Por Darwin Marinho e Marcos Alexandre*
A adoção de políticas afirmativas por empresas públicas do audiovisual é uma condição indispensável para pensar em um mercado mais inclusivo através da democratização dos recursos e fortalecimento da cadeia produtiva a partir das empresas vocacionadas.
Historicamente, o audiovisual brasileiro é marcado pela exclusão e, a partir de medidas como pontuação extra para grupos minorizados, reserva de vagas e recorte territorial, o setor tem se tornado mais forte, diverso e economicamente sustentável.
Através da bem sucedida experiência da Spcine e da RioFilme, percebemos a necessidade de reforçar a urgência de incorporar essas diretrizes na estrutura do poder público, como na recente Bahia Filmes e na futura Ceará Filmes.
Spcine: referência na institucionalização da diversidade
A Spcine é referência nacional na implementação de políticas afirmativas no setor audiovisual. Desde 2019, a empresa municipal adota medidas que incluem critérios de ações afirmativas para pontuação adicional, reserva de vagas e implementação de cotas em seus editais e programas.
Em 2024, esse compromisso foi aprofundado com a publicação da Portaria nº 1/2024, que atualiza e institucionaliza as diretrizes afirmativas em todos os programas e ações da empresa. A nova portaria estabelece fundamentos jurídicos e políticos robustos, da Constituição ao Estatuto da Igualdade Racial, e define diretrizes específicas para editais, cash rebates (reembolso em dinheiro), formação, difusão e contratação de pessoal.
Combinando metas obrigatórias, programas como a Rede Afirmativa e relatórios com dados públicos, a Spcine tem se tornado modelo de política pública comprometida com a equidade no audiovisual.
Iniciativas dos estados para valorização da produção cinematográfica
A empresa municipal do Rio de Janeiro também tem promovido políticas afirmativas com resultados consistentes. Em 2023, 75% dos projetos contratados em seus editais foram liderados por mulheres, e 60% liderados por pessoas negras. Os dados mostram que a política afirmativa não apenas funciona, como amplia a representatividade e a pluralidade de narrativas sem abrir mão da qualidade artística.
A Bahia saiu na frente ao aprovar, em novembro de 2023, a criação da primeira empresa pública estadual de audiovisual do Brasil: a Bahia Filmes, um marco estadual com potencial transformador. O projeto, aprovado por unanimidade na Assembleia Legislativa da Bahia, nasce com a missão de impulsionar o mercado audiovisual e a economia criativa no estado.
Ainda em fase de estruturação, a empresa está sediada no estado mais negro do Brasil e tem diante de si a oportunidade de ser referência nacional em um modelo de gestão pública que seja transversal para reparação histórica, com inclusão das políticas afirmativas em todas as ações e implementar o critério de empresas vocacionadas para fortalecimento e continuidade das empresas negras.
O Ceará segue em processo de criação de sua empresa pública de audiovisual. Com uma política estadual de ações afirmativas já em vigor, que reserva cotas para pessoas negras, quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência (PcD) , o estado tem base sólida para transformar sua estrutura de fomento com foco na descentralização e na equidade.
A Ceará Filmes pode se tornar um instrumento estratégico para o fortalecimento da produção local, da difusão regional e da formação de redes sustentáveis, sobretudo fora do eixo Sudeste.
Por que políticas afirmativas são essenciais?
As políticas afirmativas não constituem privilégios, mas, sim, mecanismos essenciais de reparação frente a desigualdades históricas e estruturais. Ao reconhecer a natureza sistêmica da exclusão, tais medidas visam estabelecer condições equitativas, permitindo que grupos historicamente marginalizados possam competir em condições de igualdade.
Os últimos editais da EBC (Empresa Brasil de Comunicação) e dos Arranjos Regionais do MinC (Ministério da Cultura) adotaram, pela primeira vez, o conceito de empresas vocacionadas para a reparação histórica, reservando uma porcentagem do recurso para produtoras lideradas por pessoas negras, mulheres, indígenas e PCD.
Esse reconhecimento institucional da desigualdade como um problema estrutural marca uma virada simbólica e prática nas políticas afirmativas brasileiras. É um passo decisivo para que os recursos públicos cheguem, de fato, a quem historicamente foi deixado de fora, fortalecendo um ecossistema audiovisual mais diverso, justo e representativo.
O que as novas empresas públicas devem priorizar
Para que Bahia Filmes e Ceará Filmes cumpram seu potencial transformador, é fundamental que incorporem desde o início:
- Critérios de pontuação afirmativa nos editais;
- Mecanismos de reserva de vagas e ações afirmativas para empresas vocacionadas;
- Criação de Coordenação de Políticas Afirmativas;
- Divulgação pública de dados com recorte de raça, gênero e território;
- Apoio à formação técnica e criativa para populações sub-representadas;
- Programas de mentoria, difusão e distribuição voltados à diversidade.
O fortalecimento das empresas públicas de audiovisual precisa caminhar lado a lado com o compromisso ético e político com a reparação histórica. Spcine e RioFilme demonstram que políticas afirmativas funcionam.
A Bahia Filmes e a futura Ceará Filmes têm a chance de institucionalizar essas diretrizes desde sua fundação. É hora de garantir que o audiovisual público reflita a multiplicidade do Brasil, não apenas nas telas, mas também nas estruturas de decisão e financiamento.
*Darwin Marinho é realizadora audiovisual do Ceará associada a Apan – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro e Marcos Alexandre é realizador audiovisual da Bahia associado a APAN – Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro.