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Esta coluna é um espaço para reflexões e debates sobre as produções e ações de profissionais do audiovisual negro. Aqui vamos conversar sobre mercado, políticas públicas, ações afirmativas e estrat...ver mais

Quando vidas negras importam no audiovisual

Políticas afirmativas não criam apenas carreiras: elas potencializam talento, inovação e nutrem territórios inteiros de imaginação e pertencimento

Por Tatiana Carvalho Costa*

Em 2016, com o primeiro edital afirmativo para longa-metragem, o cinema brasileiro viveu uma cena histórica. A atriz Léa Garcia, com mais de seis décadas de carreira, declarou que era a primeira vez que trabalhava em um set de filmagem rodeada por pessoas negras como ela. O filme era Um dia com Jerusa, dirigido por Viviane Ferreira, realizado por uma equipe majoritariamente negra e feminina. Ali também estava o talento de Lílís Soares, que se destacou  na direção de fotografia e, anos depois, conquistaria o reconhecimento internacional com Mami Wata, dirigido pelo nigeriano CJ Obasi.

“Cabeça de Nêgo”, longa dirigido por Déo Cardoso, empregou mais de 270 pessoas e desenvolveu uma estratégia de distribuição que levou o filme tanto para o circuito comercial quanto para escolas públicas em periferias de diferentes regiões do país, indo ao encontro de seu público. Em um Brasil onde 5.109 dos 5.570 municípios não têm salas de cinema e menos de um terço da população acessa plataformas de streaming, essa escolha significou muito mais que exibição: foi acesso, pertencimento e diálogo direto com jovens negros que raramente se veem refletidos nas telas. Tanto o diretor quanto a distribuidora responsável por essa metodologia, Talita Arruda, são profissionais negros que mostraram que democratizar o audiovisual exige pensar para além dos circuitos convencionais. “Marte Um”, dirigido por Gabriel Martins, produzido pela Filmes de Plástico, em Minas Gerais, é a materialização de um ecossistema criativo que vem transformando Contagem em referência nacional. Crianças e adolescentes daquele município passaram a se reconhecer nas histórias, enxergando o cinema como possibilidade concreta de existência. 

Políticas afirmativas não criam apenas carreiras: elas potencializam talento, inovação e nutrem territórios inteiros de imaginação e pertencimento. Estes três longas são o resultado de um primeiro e único edital afirmativo, de 2016, voltado para diretores negros. Os três foram exibidos em salas de cinema e seguem em plataformas comerciais de streaming nacional e internacionalmente, cumprindo um ciclo virtuoso de encontro com seu público. 

Celebramos esses avanços, mas não podemos esquecer da descontinuidade que se seguiu. O retrocesso vivido no governo Bolsonaro quase apagou essas conquistas, colocando em risco carreiras, projetos e a própria esperança de continuidade de um cinema verdadeiramente brasileiro – diverso, plural. Foi apenas com a retomada das políticas federais, a partir do Congresso e do atual governo Lula que pudemos retomar, com um certo atraso, o caminho de democratização no setor. Destaco aqui a importância das Leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo e sua implantação com Ações Afirmativas via Instrução Normativa do Ministério da Cultura, para que nós, profissionais do audiovisual negro, pudéssemos voltar a respirar e reconstruir o que havia sido interrompido.

Hoje, no entanto, enfrentamos novos desafios. Em diversos estados e municípios, medidas vêm sendo distorcidas, muitas vezes usadas por empresas brancas que se valem de cartas de intenção de pessoas negras apenas para acessar recursos, descartando ou desrespeitando profissionais negros. Casos de fraudes em autodeclaração racial e relatos de assédio e violência em sets de filmagem também se acumulam, exigindo respostas institucionais mais firmes. Temos acompanhado de perto alguns desses casos, mas é fundamental um engajamento mais incisivo e responsável de gestores nos municípios e estados para evitar distorções no fomento público.

É urgente fortalecer e ampliar as Ações Afirmativas. De um lado, garantindo mecanismos de aplicação mais justos, observando e analisando os dados, e qualificando gestores para serem capazes de executar políticas de maneira mais consistente. De outro, expandindo o alcance das ações também para CNPJs negros, de modo que empreendedores e empresas negras possam acessar recursos, gerar riqueza e consolidar a propriedade intelectual como ativo de toda a cadeia produtiva — da criação à distribuição. 

Temos alguns avanços importantes, como a adoção do conceito de Empresas Vocacionadas para a Reparação Histórica em editais seletivos previstos no Plano Anual de Investimentos referente  a 2024 (PAI 2024) definido pelo Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA). Nesse contexto, foram lançados dois editais, ainda em andamento: Chamada Pública  BRDE/FSA – Produção Seletivo Cinema – 2024 e no  Edital de Seleção TV Brasil (Edital de Chamamento n.º 1/2025-EBC). Ainda que a ideia de Reparação Histórica não tenha sido acolhida neste momento, consideramos esses editais um avanço nas Políticas Afirmativas no Audiovisual. 

Para a consolidação e aprimoramento dessa política, fundamental a normatização do conceito de Empresas Vocacionadas e um acompanhado com pesquisas que mensurem os impactos reais para profissionais negros e para os territórios. Cabe à Agência Nacional do Cinema (Ancine) a tomada de decisão e a ação concreta para que, neste momento, os avanços nas Ações Afirmativas sejam efetivos no contexto dos Planos Anuais de Investimento.

Também é uma questão de coerência. Entre os objetivos estratégicos com resultados para a sociedade civil estabelecidos pela própria da Agência para o período de 2024-2027, estão: estão “promover o crescimento econômico do setor audiovisual brasileiro” e “garantir a regionalização e a diversidade do fomento ao setor audiovisual brasileiro”. Esses objetivos estão no Plano de Gestão Anual 2025  e também estiveram presentes em anos anteriores.

Sabemos que enfrentamos um cenário complexo no audiovisual brasileiro neste momento e que várias outras medidas também são necessárias. Mas a política pública para o audiovisual brasileiro não pode deixar de considerar marcadores raciais nos agentes econômicos num país com 56% de pessoas autodeclaradas negras e com, segundo dados da própria Ancine, brutais desigualdades econômicas no audiovisual para profissionais negros. Sabemos que a Agência possui um corpo técnico competentíssimo, que tem reiteradamente apresentado melhorias operacionais para o fomento, regulação e fiscalização.  E acreditamos que a Agência total capacidade de apresentar soluções para esses desafios.

A ausência da Ancine na Audiência Pública sobre Ações Afirmativas no Audiovisual realizada na Câmara dos Deputados no dia 3 de setembro é preocupante porque indicia uma falta de abertura para o diálogo mais amplo com a sociedade, sobretudo no que diz respeito à democratização do acesso aos recursos públicos. O órgão poderia liderar a execução de medidas para a efetiva diminuição nas desigualdades raciais no setor, compreendendo que se trata de justiça econômica e de democratização de mercado. 

Falar de ações afirmativas é falar de correção histórica no país mais negro fora da África. É afirmar que cinema negro é, sim, cinema brasileiro. É assumir que vidas negras não podem importar apenas em momentos de comoção ou evidência das brutais violências que historicamente ocorrem. É compreender que a presença negra, em igualdade de oportunidades, é fundamental em um setor que movimenta economia, memória e futuro.

*Tatiana Carvalho Costa é professora, pesquisadora e curadora em cinema/audiovisual, doutora em Comunicação Social pelo PPGCom/UFMG e Presidenta da Apan (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro).

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.