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Trabalha há cerca de 20 anos com tecnologia, formado em Ciência de Dados pela Universidade Johns Hopkins e atualmente cursando Ciência de Dados e Inteligência Artificial na FIAP-SP. Atua como Cient...ver mais

O game ‘Clair Obscur: Expedition 33’ é um espelho atemporal dos nossos tempos

A forma como a narrativa mostra os efeitos de um genocídio em um povo é impactante. É impossível não pensar no que ocorre em Gaza ou na pandemia.

O debate em curso sobre um código de programação poder ou não ser considerado poesia, uma forma de arte, existe um campo da tecnologia da informação em que computadores se misturam verdadeiramente com a arte, sendo a ferramenta para a construção de obras artísticas diversas. Estou falando sobre os videogames.

Assim como todas as outras formas de arte no nosso modelo de produção, os videogames estão presos em uma indústria que almeja o lucro acima de tudo e massacra seus artistas diariamente. São poucos os que conseguem enfrentar essa indústria e lançar obras realmente autorais e, mesmo que parcialmente, livres das regras mercadológicas que visam puramente o lucro.

Eis que dessa massa industrial, vez ou outra, vemos um grupo de pessoas, já que é praticamente impossível fazer um videogame sozinho, desafiar as grandes empresas e lançar obras que superam a ideia de ser apenas um caça-níquel em busca de maximização de lucros.

Guillaume Broche, diretor criativo do estúdio de games francês Sandfall Interactive, foi um desses. Cansado de seu trabalho na gigante Ubisoft, ele saiu e fundou seu estúdio, junto com diversos colegas, e em 24 de abril deste ano lançou Clair Obscur: Expedition 33.

E é preciso informar a todos: a equipe da Sandfall Interactive, composta por apenas 30 pessoas (para ter ideia, a equipe de GTA V era composta por mais de mil pessoas) produziu uma obra de arte que consegue, ao mesmo tempo, ser atemporal e tratar de diversos temas, anseios, medos e sonhos de nossa época, tendo uma trilha sonora avassaladora e um design de encher os olhos.

Sobre o que é o jogo

Expedition 33 é um RPG por turnos diferente do convencional. Sim, a cada turno o jogador precisa decidir o que seu personagem vai fazer, porém em cada decisão existe toda uma dinâmica que gera um desafio gigantesco, dependendo da dificuldade em que se joga. Se você se interessar e não tiver experiência em videogames, existe um modo no jogo chamado “História” em que tudo é simplificado para você poder acompanhar essa obra de arte sem tantos desafios. Porém isso é tudo o que falarei sobre a jogabilidade, pois gostaria de tratar de outros pontos sobre esse jogo que merecem atenção.

A história do jogo se inicia durante um festival chamado Gommage (que significa um tratamento de esfoliação para a remoção de células mortas da pele). De início não entendemos nada, já que o jogo não se preocupa em ser explicativo, confiando sempre nas capacidades intelectuais de quem o joga para compreender tudo o que ocorre. Esse tipo de roteiro permeia toda a obra, com frases que você só vai entender muito tempo depois e diálogos que exigem uma capacidade interpretativa gigantesca para compreender, principalmente, aquilo que não foi dito.

Somos jogados em um pedaço de Paris completamente diferente, aqui chamada de Lumiere, a cidade luz. Ao mesmo tempo em que a cidade está destruída, ela também é belíssima aos olhos. Percebemos também um mundo fragmentado em que aquele pedaço foi separado do continente e hoje é apenas uma ilha.

Lumiere, a cidade luz – Clair Obscur: Expedition 33 – Imagem: Divulgação / Kepler Interactive

Logo descobrimos que o Gommage ocorre uma vez por ano e durante esse festival um ser colossal, conhecido como A Artífice, pinta todos os anos um número em um monólito gigante. Isso acontece há cerca de 77 anos e ninguém sabe o significado desse ato, apenas que, ao pintar um número, todas as pessoas que têm aquela idade morrem, desaparecendo do mundo na frente de seus amigos, familiares e amores.

A forma com que a narrativa te envolve nessa realidade estranha e mostra os efeitos de um genocídio em um povo é impactante e, com menos de 30 minutos, você estará com parte de si destruída pelas emoções daquilo. Histórias de amor são podadas no meio do caminho, amigos de longa data simplesmente não existem mais e crianças se abraçam, tentando encontrar força no momento exato em que se tornam órfãs.

É impossível não pensar sobre o que ocorre em Gaza nesse momento ou nos efeitos da pandemia de Covid-19, que nas mãos de uma pessoa como Jair Bolsonaro, se tornou uma arma de genocídio em nosso país.

Um dos piores sentimentos é perceber que nenhuma daquelas pessoas sabe o que está ocorrendo. Milhares de pessoas são mortas sem que nenhuma delas entenda o motivo para isso.

Na busca de entender o que está acontecendo e tentando parar a Artífice, todos os anos uma expedição é enviada para a área continental do mundo e você, como jogador, irá participar da Expedição 33.

A força do coletivo e da história

O mundo de Clair Obscur é um mundo cruel, com monstros, os Nevrons, que a qualquer momento podem aparecer e te matar. Ninguém sobrevive sozinho e a dependência de todo seu grupo é sempre colocada como algo vital na obra.

Os autores inclusive brincam com isso, criando um protagonismo heróico que fatalmente deixa de existir e se torna apenas parte de uma história muito mais ampla.

História, essa, que é outra força motriz do jogo. Ao longo de 77 anos, cerca de 50 expedições existiram, cada uma recebendo o número que a Artífice pintou no Monólito. Todas as expedições anteriores fracassaram, porém todas elas deixaram algo para auxiliar as expedições no futuro.

Um desses legados foi uma das coisas que me levou a querer escrever esse texto. Estava caminhando pelo cenário e me deparei com uma cena terrível. Uma ponte formada por corpos humanos que levava a três monstros. Ao encontrar uma carta, descobri que todos aqueles corpos eram da expedição 35, que em um momento de desespero, enquanto eram mortos por monstros que atacavam à distância, tiveram como último ato a utilização de seus próprios corpos para construir uma ponte que auxiliasse as expedições futuras a enfrentar aquele perigo.

Mesmo a Expedição 33 tem certa certeza do seu fracasso naquele mundo cruel, em que, novamente fazendo um paralelo com a realidade, aquele povo não tem o poderio militar para enfrentar seus inimigos.

Com isso, o lema de todas as expedições é ecoado diversas vezes ao longo da obra: “POR AQUELES QUE VIRÃO!”

Nenhuma expedição ocorre por si mesma, nenhuma busca glórias de uma batalha. Elas estão em uma missão, buscando a sobrevivência do seu povo, buscando uma forma de garantir que aqueles que virão depois delas, possam sobreviver.

A grande reviravolta


Eu não tenho problemas com spoilers. Não acho que saber a história retira o impacto de vivenciá-la, porém, em respeito àqueles que gostariam de jogar essa obra e pensam diferente, aviso que o trecho a seguir contém spoilers importantes.

Cena do jogo Clair Obscur: Expedition 33 – Imagem: Divulgação / Kepler Interactive

Conforme o jogo avança, vemos os personagens sofrendo perdas, estreitando laços, enfrentando desafios e se tornando um grupo quase coeso, apesar de diferenças enormes de personalidades em cada um deles.

Ao fim, somos finalmente levados a enfrentar a Artífice e depois de uma batalha extremamente desafiante, finalmente achamos que a derrotamos, pois a mecânica do game nos leva a acreditar que todo grande inimigo tem duas fases de luta.

Logo temos a primeira quebra de narrativa, com uma terceira fase em que a Artífice simplesmente desiste de lutar e começa a curar todos os personagens do jogo. Mas a mecânica não te dá outra escolha a não ser atacá-la e matá-la.

No fim, descobrimos que a Artífice não era a vilã do jogo. Suas pinturas eram um aviso sobre o que aconteceria, a única forma que ela encontrou para fazer isso, pois o verdadeiro vilão do jogo sempre foi Renoir, que se constrói ao longo do jogo como um dos maiores vilões na história dos videogames e é interpretado brilhantemente pelo ator britânico Andy Serkis, o Gollum de O Senhor dos Anéis.

Renoir é o antagonista dentro de Clair Obscur: Expedition 33 – Imagem: Divulgação / Kepler Interactive

Porém, novamente quebrando os padrões de narrativa da indústria ocidental, o jogo conta com três atos, um epílogo e um prólogo, que são mostrados fora de ordem. Ao final do terceiro ato, você derrota finalmente a Artífice e é levado para o epílogo, em que finalmente há a explicação sobre o que está ocorrendo no jogo.

Tudo é uma realidade virtual

Ou, mais ou menos isso.

Em um momento em que os temas de realidade virtual e inteligências artificiais, que são muito caros aos filósofos e sociólogos focados em tecnologia, foram sequestrados por um debate puramente capitalista e geram debates rasos e pensamentos pré-concebidos sobre esse tema, uma das melhores decisões das 30 pessoas envolvidas no projeto foi a de mascarar a ficção científica que propuseram em um verniz de fantasia, desarmando algumas predisposições do público para tratar desse tema.

Aqui, os desenvolvedores são trocados por pintores, o código é trocado por tinta, a tela do software é trocada por uma tela de pintura e, por fim, a inteligência artificial é trocada por personagens cativantes, vítimas de um genocídio e dos quais o game não se dispõe a discutir o quão reais são. Os pintores simplesmente pintam os quadros e a cada pintura criam toda uma nova realidade.

Quando as várias camadas da história são desnudadas, nos deparamos com um lado composto por uma família em luto após a morte do pintor original do quadro que ganha vida e que, mesmo com toda a família pintando alguns pedaços para compor aquela obra, um pedaço da alma desse pintor ainda vive no quadro. Sua mãe, em um profundo sentimento de dor, entrou dentro desse quadro para ainda estar com seu filho, enquanto um pai, moldado em grande parte pela cultura patriarcal, se coloca na responsabilidade de salvar a família do luto, destruindo aquela obra para que, em sua cabeça, a família possa superar a morte desse filho que partiu há muito. A família ainda é composta por outros dois filhos, sendo que a mais velha se desiludiu com aquelas realidades virtuais e decidiu lutar suas próprias guerras sozinha e outra encontra-se confusa, sem saber se preserva aquele último pedaço da alma do irmão que morreu para salvá-la ou destrói o quadro para forçar sua família a seguir em frente.

Do outro lado, temos todos os habitantes do quadro que, em meio a essa questão familiar dos deuses daquele mundo, se veem em meio a um genocídio que pouco entendem e, no processo de compreender, precisam encarar a realidade de que todas as suas vidas, amores, dores, alegrias, tristezas e uma infinidade de sentimentos e história riquíssima e profunda é uma mera pintura feita no mundo real.

No tempo todo o jogo nos questiona se por aquela realidade toda ser uma mera pintura, faz tudo aquilo ser menos real, enquanto no processo nos questiona sobre as formas de lidar com o luto.

O game, lançado em um mundo pós-pandêmico e tão caótico quanto agora, em que jamais conseguimos entender tudo o que ocorre, enquanto somos dominados por tecnologias que apenas nos confundem mais ainda, é uma obra de arte que retrata a nossa época de maneira sublime.

Enquanto ficção científica mascarada de fantasia, apresenta uma profundidade e, principalmente, uma sensibilidade sem igual, lidando de frente e com leveza em temas como: a decisão de ter um filho no mundo em que vivemos, a importância daqueles que vieram antes de nós, a necessidade de ao menos tentar compreender a realidade para lidar com ela, entre tantos outros.

Por sua temática, acabei pensando em outras obras de ficção científica similares, como Matrix e Ghost in The Shell. Na minha concepção, a forma com que Clair Obscur: Expedition 33 lida com esses temas é superior a dessas outras obras.

Para finalizar com chave de ouro ou não, o game ainda brinca com outro padrão industrial de videogames de RPG: a possibilidade de você decidir. Enquanto jogos como The Witcher e Baldurs Gate apresentam diversos momentos de decisão durante o jogo, nem sempre te dando o contexto e potenciais consequências daquela decisão, Clair Obscur te segura pela mão, apresentando durante algumas dezenas de horas (que dependem do quanto você quer se aprofundar no mundo), para apenas te dar uma decisão final com apenas duas escolhas:

Você deseja destruir ou preservar aquele quadro? Você deseja destruir ou preservar aquela realidade?

Não existe uma decisão correta, mas, sem me aprofundar tanto para não atrapalhar demais a brincadeira, além dessa decisão desafiar o conceito sobre o que é realidade para cada jogador, ela também carrega uma intensa disputa entre o individualismo e a coletividade, fazendo com que para que um conceito resista, outro conceito precise sofrer um pouco, mesmo que em nenhum caso eles sejam completamente rejeitados.

Cena do jogo Clair Obscur: Expedition 33 – Imagem: Divulgação / Kepler Interactive

Além desse debate mais direto e focado em tecnologia que obras que tratam de realidades virtuais podem causar, há outros debates derivados disso e igualmente importantes. O tema de realidade virtual, por exemplo, pode gerar um debate sobre as diferentes realidades sociais e individuais, nos levando a questionar coisas como o quão real é o sentimento de alguém que vive uma realidade diferente da minha ou o quão eu devo me preocupar com pessoas que estão há milhas de distância e vivem uma realidade inimaginável para mim?

Novamente, é difícil não pensar no genocídio que ocorre na Palestina e no quanto é fácil para nós fechar os olhos para a dor de um povo, pois tal povo vive uma realidade muito diferente e distante da nossa.

No fim, seriam as “realidades virtuais” algo completamente separado da nossa própria realidade ou um complemento daquilo tudo o que vivemos?

Observação: Esse texto foi escrito enquanto eu escutava a maravilhosa trilha sonora do jogo.

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