Colocar em cena, em um espetáculo solo, o tema do colapso ambiental do planeta em decorrência da ação humana, por meio do sistema predatório do capitalismo, não é tarefa fácil. Sem enredo linear, sem diálogo intersubjetivo entre personagens, sem catarse e desfecho positivo, a abordagem de uma tragédia em andamento é matéria de ordem épica para o teatro.
Em Galhada, em tempos de fissura, resultado de uma pesquisa teórica e estética desenvolvida pela atriz, professora e pesquisadora Alice Stefânia, da Universidade de Brasília, essa matéria áspera é abordada por múltiplas formas.
O espetáculo articula cenas em que a atriz executa composições coreográficas exigentes com leveza e vigorosa força expressiva. Ela canta com destreza musical canções acompanhada pela acústica de uma guitarra, interage com o público como se fosse uma palestrante discorrendo com ironia e agonia sobre o impasse planetário a que chegamos, por culpa do sistema hegemônico que adotamos e nos governa. Também escuta áudios de celular de vozes de familiares, de um estudante, que aterrizam o contexto de nosso tempo, distópico, pós-pandêmico, em que as emergências climáticas se tornaram parte trágica de nosso cotidiano, cenas corriqueiras do bloco dos telejornais que trata de crimes e desastres naturais.
A solidão da atriz em cena é também a solidão da personagem, uma intelectual que toma consciência do desastre em curso e tenta alertar seus interlocutores, o público, a plateia dos teatros, mas também as crianças e jovens de escolas e universidades, do que estamos vivendo.
Existe um sujeito coletivo que possa se contrapor ao ritmo da destruição imposta pelo capitalismo?
Se existe, ele não aparece em cena. Todavia, o movimento da atriz e personagem indaga, instiga, inquieta, incomoda a passividade a que fomos colocados diante da tragédia em curso: a de espectadores, consumidores e vítimas.
Há múltiplas camadas narrativas articuladas no espetáculo: a escolha das imagens mostradas em sequência, que alternam cenas de territórios devastados pela exploração mineral, industrial, com cenas líricas da vida natural, que expõem a beleza e complexidade do convívio entre flora e fauna em escalas micro, a vida de insetos como as formigas, borboletas, abelhas. Esse compasso alternado entre o impacto da escala macro da ação humana e da escala micro da vida natural e sua singela beleza compõe um pilar de “Galhada”.
Em uma das cenas, espécies de árvores do cerrado são alertadas, numa espécie de rádio-comunitária que as interliga, sobre o avanço da soja no bioma, que coloca em risco toda a existência de flora e fauna nativa do Cerrado. Com efeito, foi nos tempos da ditadura que projetos se encarregaram de “colonizar” o centro-norte do país com a monocultura da soja, uma das principais commodities agrícolas de exportação do país. A paisagem do deserto verde de soja tem transformado horizontes, relevos, antes densos de mata nativa e diversa.

Em outra cena a personagem liga para o necrotério para encomendar o enterro, não apenas de um defunto humano, mas de espécies inteiras de animais, de ecossistemas, de formas de vida, o enterro de um cemitério de mundos.
Num determinado momento é exibida uma imagem cênica que alude à ideia de galhada e a personagem pergunta ao público o que significa aquela imagem: veias, neurônios, ruas, rios, raízes…foram algumas das respostas. A imagem, portanto, remete à estrutura que nos compõe enquanto corpo humano, ao mesmo tempo que descreve estruturas rizomáticas do planeta, liga afluentes a rios maiores, da mesma forma como liga vasos sanguíneos às artérias. Somos parte integrante desse sistema, dessa bioesfera, ao mesmo tempo em que somos o algoz da vida no planeta como ela se constitui hoje.
Galhadas brotam, em determinados momentos do corpo da atriz, e do corpo do ator e músico Fernando Santana, que toca guitarra e executa a trilha musical eletronicamente. O corpo humano é tratado como um fenômeno em permanente mutação, como algo que pode se adaptar, resistir e sobreviver, mas também como algo vulnerável.
Se, por um lado, o trabalho de Alice Stefânia inquieta pelo que aborda e confronta, por outro encanta pela maneira como constrói com seu corpo e sua voz, uma forma que é, ao mesmo tempo épica e lírica, de abordar o problema por meio da linguagem teatral.
O espetáculo, dirigido pela própria atriz em parceria com Giselle Rodrigues, foi apresentado na 30ª edição do Festival Cena Conteporânea. É o resultado do trabalho de pesquisa da atriz, cantora, professora e pesquisadora de artes cênicas da UnB e do coletivo em que atua, o Teatro do Instante.
Rafael Villas Bôas é jornalista, professor da UnB e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UnB.
*Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato DF.