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Rede de Sementes do Cerrado (RSC)

Sistemas agrocerratenses: sementes que restauram, saberes que alimentam

Esses sistemas não são apenas ecológicos; são políticos.

Em tempos de emergência climática, quando produzir alimentos sem devastar o meio ambiente é uma das maiores encruzilhadas da humanidade, o Cerrado brasileiro ressurge como território de soluções. Longe das monoculturas que secam o solo e apagam a biodiversidade, agricultores familiares vêm protagonizando uma revolução silenciosa: os sistemas agrocerratenses (Sace).

Mais conhecidos como Sace, esses modelos de produção se inspiram nas paisagens savânicas e campestres do Cerrado, respeitando a lógica do bioma, suas espécies, seus ciclos. Ao contrário da agricultura convencional, que desmata para plantar, o Sace restaura áreas degradadas com espécies nativas, promovendo a regeneração ecológica e, ao mesmo tempo, garantindo renda, alimento e autonomia para as comunidades locais inseridas no bioma.

Essa proposta, que parece simples, é na verdade profundamente transformadora. Ela inverte a lógica dominante que separa produção e conservação, campo e floresta, gente e natureza. O Sace não apenas planta hortaliças, frutíferas, medicinais e espécies nativas — ele cultiva memória, pertencimento e futuro. Um exemplo concreto dessa abordagem está no Assentamento Oziel Alves III, no Distrito Federal. Lá, agricultores familiares da Associação de Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu (Aprospera), com o apoio do projeto Sementes do Cerrado: caminhos para o fortalecimento da cadeia de restauração ecológica inclusiva nos corredores da biodiversidade, escolheram restaurar seis hectares do território com base no Sace.

A decisão não veio de cima, mas das próprias necessidades do assentamento: restaurar o Cerrado, sim, mas também garantir comida na mesa, coleta de sementes, combater o fogo, gerar renda e fortalecer os laços com a terra. Restauração produtiva e inclusiva.

Esses sistemas não são apenas ecológicos; são políticos. Eles reconhecem e valorizam o conhecimento da agricultura familiar. Ao promover a autonomia das comunidades, o Sace fortalece a soberania alimentar e resiste à lógica predatória que domina a agricultura no Cerrado — marcada por monoculturas, uso intensivo de agrotóxicos e expulsão de povos do campo. E mais: o Sace responde ao chamado da biodiversidade. Ele reabre caminho para o retorno do lobo-guará, da ema, da seriema e de tantas outras espécies que dependem das vegetações abertas e biodiversas. Contribui para a ciclagem de nutrientes, para a recarga hídrica, para manter o Cerrado vivo e funcional.

Mas para que os sistemas agrocerratenses ganhem escala, é preciso investimento, políticas públicas e articulação entre diferentes atores sociais que atuam juntos para fortalecer iniciativas de conservação ambiental.

A restauração ecológica com inclusão produtiva não pode ser restrita a pequenos projetos isolados. É urgente transformar o Cerrado em um território onde se semeie o futuro sem apagar os saberes tradicionais e os modos de vida das comunidades que sempre habitaram e cuidaram do Cerrado.

Num momento em que o Cerrado segue sendo o bioma mais devastado do Brasil, iniciativas como o Sace nos lembram que há outros caminhos possíveis. Que é possível produzir sem destruir. Que a verdadeira inovação está em ouvir as comunidades, respeitar os ciclos da natureza e colocar o conhecimento tradicional no centro das soluções.

Se quisermos enfrentar a crise climática de forma justa, olhando para o Cerrado e para seus povos, os sistemas agrocerratenses nos mostram por onde começar.

*O projeto Sementes do Cerrado, executado pela RSC, tem como meta restaurar 200 hectares com espécies nativas. Financiado pelo Edital Corredores da Biodiversidade da Iniciativa Floresta Viva (BNDES), conta com o apoio da Petrobras e do Funbio como parceiro gestor.

**Maria Antônia Perdigão é jornalista, mestre em Comunicação Social e consultora em comunicação socioambiental. Atualmente, atua como coordenadora de comunicação da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

***Vinícius Lima é engenheiro agrônomo e atua em territórios tradicionais e de reforma agrária, com foco na agroecologia. Atualmente, é técnico da Associação de Produtores Agroecológicos do Alto São Bartolomeu (Aprospera).

****Maria Eduarda Camargo é cientista ambiental e consultora em restauração ecológica, sementes nativas, planejamento ambiental e uso do solo e regularização ambiental. Atualmente atua como coordenadora de restauração ecológica da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

*****Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

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