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A Rede de Sementes do Cerrado (RSC) é uma associação civil, sem fins lucrativos, reconhecida como OSCIP, cuja missão é promover a conservação do Cerrado e a valorização de sua sociobiodiversidade. ...ver mais

Dia do Cerrado: conservar também é reconhecer os povos que fazem o bioma pulsar

Conservar nossa sociobiodiversidade significa, antes de tudo, valorizar e proteger os modos de vida de quem sempre cuidou dessa terra

Hoje é o Dia do Cerrado, o coração do Brasil. É daqui que nascem oito das doze bacias hidrográficas que abastecem o país. O Cerrado é uma das savanas mais biodiversas do planeta, mas também uma das mais ameaçadas. Em meio ao avanço do desmatamento, uma verdade se impõe: quem mantém o bioma em pé, protegendo suas águas, sementes e diversidade, são os povos e comunidades tradicionais, que não deixam o Cerrado parar de pulsar.

Conservar nossa sociobiodiversidade significa, antes de tudo, valorizar e proteger os modos de vida de quem sempre cuidou dessa terra.

São muitos os povos que compõem essa identidade viva — indígenas, quilombolas, geraizeiros, vazanteiros, ribeirinhos, entre tantos outros. Para eles, o Cerrado não é apenas fonte de recursos, mas entidade sagrada, “casa mãe” que provê sustento, cura, cultura e identidade. Essa relação de pertencimento revela uma dimensão que vai além da ecologia: trata-se de um vínculo espiritual e cultural que sustenta a vida no bioma.

Os dados confirmam o que os territórios já sabem. Relatórios anuais do MapBiomas mostram que Terras Indígenas e territórios quilombolas figuram entre as áreas mais preservadas do Cerrado. Não se trata de acaso: é a consequência direta de modos de vida baseados no uso sustentável e no conhecimento ancestral dos ciclos naturais.

O território quilombola Kalunga, em Goiás, é um exemplo que revela tanto a potência quanto os desafios vividos pelos povos do Cerrado. Segundo levantamento do MapBiomas, mais de 83% da vegetação nativa segue preservada dentro dos limites do território Kalunga, índice muito superior ao do estado, que conserva apenas 30%, e ao do Brasil, que mantém 48%. Esse dado comprova o que a vivência já ensina: onde há presença de comunidades tradicionais, tem Cerrado em pé.

Essa conservação não ocorre sem conflitos. A ausência da titulação definitiva mantém grileiros e fazendeiros no território, e é justamente a ação desses atores que explica parte dos 17% já desmatados na região, como no caso do Correntão registrado em 2019 e 2025, na fazenda Alagoas, ainda não desapropriada.

Esse avanço ilegal difere radicalmente do uso das roças de toco, prática agrícola tradicional Kalunga que, diferente da exploração predatória, respeita os ciclos da natureza. Nesse sistema, a área é cultivada por no máximo cinco anos e depois deixada em descanso, permitindo a regeneração natural da vegetação, até que, em poucos anos, já não restem sinais de uso. É uma forma de convivência harmoniosa com a terra, praticada e transmitida ao longo de séculos e que fez do território o primeiro do Brasil a ser reconhecido internacionalmente pela ONU, em 2021, como Territórios Indígenas e Áreas Conservadas por Comunidades Locais (Ticca).

Mas a contribuição dos povos não se limita à proteção do que ainda resiste. Eles são também protagonistas na restauração do bioma. Com a missão de conectar todos os elos da cadeia da restauração, com protagonismo comunitário na conservação do Cerrado, a Rede de Sementes do Cerrado (RSC) tem executado , atualmente, sete projetos que partem do princípio de que não há restauração sem inclusão social. 

Esse trabalho vai além da recuperação ambiental. Ele fortalece a economia local ao gerar renda com a coleta de sementes, amplia oportunidades de trabalho no campo e valoriza o conhecimento tradicional. Mostra, na prática, que é possível unir conservação da biodiversidade e justiça social, tornando o Cerrado mais resiliente e as comunidades mais fortes.

A força dos povos do Cerrado também impulsiona a ciência. Pesquisadores e coletores restauradores trabalham juntos para transformar a forma como a academia se relaciona com o bioma. Em parceria com o laboratório de Termobiologia da Universidade de Brasília (UnB),  o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento da RSC realiza testes de germinação com sementes de base comunitária, fruto do trabalho de coletores locais. Isso aproxima ciência e saber tradicional, ampliando horizontes de pesquisa e reforçando que ambos não competem, mas se complementam.

A voz das comunidades ecoa do campo à cidade e ao mesmo tempo, alertam para os desafios da crise climática, que já ameaça a produção e fragiliza espécies nativas.  A contradição fica ainda mais evidente quando se aproxima a COP30, que neste ano acontece no Brasil. O discurso internacional aponta povos e comunidades tradicionais como protagonistas da conservação, mas esses mesmos povos seguem excluídos das mesas de negociação.

Quando se fala em enfrentar a crise climática, muito se repete o termo “justiça climática”. Mas ela não existe sem justiça social.

E isso significa garantir a permanência das comunidades em seus territórios, com políticas públicas básicas e o direito fundamental à terra assegurado.

No Dia do Cerrado, a mensagem é clara: para salvar o bioma, é preciso ouvir, respeitar e fortalecer seus guardiões. Apoiar povos e comunidades tradicionais significa demarcar e titular territórios, investir em cadeias produtivas da sociobiodiversidade e assegurar que suas vozes estejam no centro das decisões. O Cerrado vale muito mais vivo, e são esses povos que, há séculos, nos mostram como mantê-lo de pé.

*Alciléia Torres é quilombola Kalunga, graduanda em jornalismo e comunicadora popular com ênfase no ativismo socioambiental e sociocultural.  Atua como analista de mídias sociais da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

**Maria Antônia Perdigão é jornalista, mestre em Comunicação Social e consultora em comunicação socioambiental. Atua como coordenadora de comunicação da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

***Thais Souza é jornalista, especialista em Docência do Ensino Superior. Atua como assessora de imprensa da Rede de Sementes do Cerrado (RSC).

****Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato DF.

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