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‘Mães alienadoras’, ‘pais violentos’: de acusações e disputas em torno da Lei de Alienação Parental

Pensar o tema apenas sob a ótica de uma oposição entre dois lados é uma perspectiva rasa

Camila Belisario* e Júlia Viana Palucci**

Na última sexta-feira, 25 de abril, foi o Dia Internacional de Combate à Alienação Parental, fenômeno reconhecido pela legislação brasileira por meio da Lei 12.318 de 2010. O texto legal define a alienação parental como “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este”.

Isso poderia ocorrer, por exemplo, através da desqualificação do genitor, imposição de obstáculos à convivência entre ele e a criança, omissão deliberada de informações importantes – como endereço, questões de saúde e vida escolar -, mudança injustificada de domicílio com o intuito de dificultar o contato, ou ainda a apresentação de falsas denúncias contra o genitor.

Embora a lei utilize o termo “genitor” como uma referência genérica, as disputas políticas em torno da lei são atravessadas por questões de gênero. Os debates públicos expõem tensões relacionadas aos papéis sociais da maternidade e da paternidade, evidenciando mobilizações organizadas não apenas em torno dos direitos das crianças e dos adolescentes, que são os sujeitos de direito da Lei de Alienação Parental, mas também em torno do direito de ser mãe e de ser pai.

O dia de Combate à Alienação Parental, portanto, tem sido marcado não apenas por campanhas que buscam consolidar a noção de “alienação parental”, mas também pelas reflexões e embates protagonizados por aqueles que lutam contra a lei e mobilizam-se em prol de sua revogação no Brasil.

Os coletivos de mulheres-mães, movimentos e profissionais que se intitulam como feministas ou aliados na luta pelos direitos das mulheres, se colocam contra a Lei de Alienação Parental em prol dos direitos das crianças e das mulheres que são suas mães. Esses grupos denunciam que a LAP, como é conhecida a lei, tem sido usada como forma de defesa e retaliação frente às denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes e de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei Maria da Penha. É previsto que, diante dessas denúncias, o agressor seja afastado do convívio com as vítimas, mediante o deferimento de medidas protetivas. Os defensores dos direitos das crianças e suas mães alegam que, em resposta às denúncias e a eventuais medidas de afastamento, homens agressores e abusadores estariam reivindicando a guarda dos filhos ao colocar em dúvida as alegações das mulheres, com o apoio de um Judiciário patriarcal e machista.

Único país do mundo

O Brasil é o único país do mundo a adotar uma legislação específica sobre alienação parental, embora esse conceito seja aplicado em diversas partes do mundo – frequentemente sendo alvo de grande controvérsia. O “Parental Alienation and Domestic Violence: International Partnership for Innovative Strategies”, por exemplo, é um projeto que reúne pesquisas dedicadas a compreender os impactos do termo “alienação parental” em mulheres e crianças vítimas de violência intrafamiliar em 13 países diferentes. Entre os países onde são realizadas as pesquisas, além do Brasil, estão os Estados Unidos, Canadá, Islândia, Nova Zelândia e Itália.

Estudiosos e ativistas dos direitos das mulheres creditam, no Brasil, a criação e crescente aplicação da LAP no direito de família a uma reação (backlash) contra a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, e o decorrente aumento exponencial de denúncias de violência doméstica e familiar nas últimas décadas. O crescimento de registros policiais e processos judiciais relacionados a casos de violência contra a mulher, em especial, violência doméstica, é atribuído não apenas à aplicação da Lei Maria da Penha, mas também a campanhas de conscientização e educação sobre o tema da violência de gênero e a uma agenda de políticas públicas de proteção das mulheres em todas as esferas de governo.

A polêmica quanto à aplicação da LAP, no entanto, não se restringe ao campo do direito. A própria noção de “alienação parental” é objeto de controvérsias e disputas também na esfera social e no âmbito da psicologia e psiquiatria, onde a teoria teve sua origem ao ser formulada, na década de 1980, pelo psiquiatra estadunidense Richard Gardner. Profissionais de saúde mental, especialistas em abuso infantil e advogados argumentam que a “síndrome de alienação parental” – como foi chamada por Richard Gardner sem jamais ter sido reconhecida desta forma por associações médicas – carece de base científica, além de ser uma teoria tendenciosa contra as mulheres.

No campo das disputas legislativas no Brasil, o Ministério Público Federal vai realizar, no próximo dia 5 de maio, audiência pública com especialistas, autoridades públicas e representantes da sociedade civil para discutir a revogação da LAP. O debate será centrado justamente nas distorções da aplicação da lei em relação a mulheres que denunciam violência doméstica ou abuso sexual.

De acordo com a psicóloga e professora Edna Ponciano, em reportagem recentemente publicada no site da Câmara dos Deputados, ainda que exista um “clima mais favorável” para a revogação da LAP, é forte a pressão exercida por alguns setores do Judiciário e por parte de “homens que são beneficiados por essa legislação, daqueles que têm visão misógina e criminalizante das mulheres que protegem seus filhos e têm o direito de permanecer com eles”.

A ideia de que o judiciário favorece os homens-pais, entretanto, é uma perspectiva contrária àquela apresentada por grupos de defesa destes, formados não somente por homens, mas também por mulheres que se colocam como aliadas. Segundo esses coletivos e associações, a não aplicação adequada da Lei de Alienação Parental os prejudica. Em suas falas e posicionamentos públicos nas redes sociais e em eventos voltados à discussão do assunto, denunciam que eles têm o seu direito à paternidade violado, uma vez que o Judiciário, por ser “matriarcal” e “misândrico”, privilegia as mães em detrimento dos pais, quando se trata de uma disputa de guarda.

A argumentação ainda se aproxima do grupo oposto (aquele que é favorável à revogação da Lei de Alienação Parental), quando também coloca a Lei Maria da Penha como um contraponto, ainda que para articulá-la de maneira oposta: para os apoiadores dos “homens-pais” e defensores da LAP, a Lei Maria da Penha seria utilizada por mulheres alienadoras, que fariam falsas denúncias de violência, apropriando-se da legitimidade incontestável que a palavra da mulher teria no sistema de justiça.

Essa, no entanto, não é a percepção das mulheres que denunciam violência doméstica nas delegacias e no Sistema Judiciário. Ao pesquisar relatos e narrativas de mulheres que denunciaram violências domésticas, a pesquisadora Camila Belisario, uma das autoras deste artigo, identificou não ser raro que essas mulheres considerem que “a justiça” não está ao lado delas, “as vítimas”, mas sim, que beneficiaria os homens. Assim, eram frequentes as críticas à condução dos processos, às decisões, bem como aos policiais, advogados e juízes. O sistema de justiça criminal é, em alguns casos, visto como pior que as próprias agressões sofridas, pois além de muitas vezes descredibilizar as denúncias, tornava o processo longo, humilhante e desgastante para as vítimas e, na maioria das vezes, não fornecia o resultado esperado por elas.

Convergências em meio às disputas

Pensar essa disputa apenas sob a ótica de uma oposição entre dois lados não dá conta das múltiplas nuances que atravessam os grupos envolvidos – com seus diferentes argumentos, interesses e posicionamentos políticos. Ainda assim, ao considerar a forma como muitas vezes as discussões sobre a LAP são apresentadas como uma disputa entre lados irreconciliáveis – tanto pelas posições “contra” ou “a favor” da lei, como pelas críticas a um judiciário “patriarcal e machista” ou “matriarcal e misândrico” – chamam a atenção os pontos de convergência que despontam desse cenário de embates.

Em um primeiro momento, destaca-se o uso, por parte tanto dos defensores quanto dos críticos à LAP, de um discurso de defesa dos direitos das crianças e adolescentes – um aspecto fundamental para conferir legitimidade política e moral às pautas. Afinal, por se tratar de um terreno moralmente protegido, a infância torna-se um recurso politicamente rentável, ainda que intensamente disputado.

Em seguida, evidencia-se a relação entre a LAP e a Lei Maria da Penha, que revela como as disputas de gênero tornam-se protagonistas nas Varas de Família (onde tramitam os casos de alienação parental), segundo os próprios grupos envolvidos. Embora a LAP adote “genitor” como um termo genérico, para referir-se tanto às mães como aos pais, aqueles que se colocam contra a lei afirmam que as mães – as mulheres – são rotuladas como as típicas “alienadoras”.
Segundo o grupo, esse quadro é reflexo de uma sociedade e judiciário marcados por pressupostos misóginos e patriarcais, que impõem às mulheres rótulos historicamente associados a elas. Nas palavras de um texto escrito pela jurista Maria Berenice Dias e reproduzido integralmente no PL que originou a LAP: “a ruptura da vida conjugal gera na mãe sentimento de abandono, de rejeição, de traição, surgindo uma tendência vingativa muito grande”. Essa, então, seria a justificativa para as acusações falsas feitas pelas mulheres contra seus ex-companheiros, segundo a jurista.

Já os defensores da LAP concordam que o papel das “alienadoras” é das mulheres, mas interpretam esse dado de forma oposta: para eles, são as mulheres que historicamente detêm o poder sobre os filhos e desfrutam de maior credibilidade frente aos homens – devido ao viés “misândrico” e “matriarcal” da sociedade e do judiciário.

Para além da Lei de Alienação Parental

As críticas ao Judiciário são justamente um terceiro ponto de convergência entre os grupos que apoiam e os que rejeitam a LAP. O lado “pró-LAP” entende que a lei está aquém dos problemas enfrentados, o que tem provocado uma ampliação das pautas e do investimento político desses atores.

Uma amostra da mobilização política que vem sendo colocada em marcha pelos grupos em defesa da lei foi a realização, em novembro de 2024, do 1º Seminário Nacional de Direitos Humanos Masculinos. O evento, que ocorreu em São Paulo, teve o combate à alienação parental e a defesa da LAP como um de seus principais temas. Para os participantes, mais do que lutar pela manutenção da Lei de Alienação Parental e sua aplicação adequada, uma vez que dizem que a lei não tem garantido na prática os direitos dos pais “alienados”, é preciso lutar contra um Judiciário e uma sociedade que empodera mulheres e oprime homens.

O lado oposto à LAP também defende que o problema da alienação parental extrapola o emprego da lei, uma vez que mesmo antes de sua promulgação, as mulheres já eram punidas pela Justiça e afastadas de seus filhos por supostamente dificultarem o contato entre eles e seus pais.

Um caso considerado emblemático pelos movimentos que lutam pela revogação da LAP é o de Joanna Marcenal, uma menina de cinco anos que faleceu em 2010, no Rio de Janeiro, alguns dias antes da promulgação da lei. Joanna é considerada pelos grupos contrários à LAP como a primeira vítima da “ideologia da alienação parental”. O caso teve grande repercussão midiática por envolver disputas de guarda e denúncias de maus-tratos contra a menina que vivia com a mãe até 2010, quando a guarda foi transferida ao pai, com base em alegações de alienação parental. A mãe também teve de ficar afastada, por conta de uma medida judicial que visava impedir que ela atrapalhasse, supostamente, o vínculo de Joanna com o genitor.

Pouco tempo após a alteração da guarda, Joanna foi internada em estado grave e, após semanas em coma, morreu. A morte gerou um processo de investigação que envolvia o pai de Joanna, a madrasta e profissionais da área de saúde. O caso, que segue em aberto, é um exemplo de como o conceito de alienação parental já era instrumentalizado contra mulheres antes mesmo da promulgação da lei e, segundo os movimentos críticos à LAP, continuará sendo aplicado nos processos de disputa de guarda. Hoje, quase 15 anos após a morte de Joanna, o Movimento Joanna Marcenal pela Revogação da Lei de Alienação Parental é formado por coletivos e organizações que lutam pelo direito à vida e à proteção de crianças e adolescentes, bem como pelo direito a uma maternidade sem violências.

Vemos assim que, ainda que hoje o grande foco do debate público sobre alienação parental esteja centrado na revogação ou não da LAP, as tensões em torno dos papéis sociais da maternidade e paternidade permanecerão parte das disputas de gênero, refletindo-se tanto nas práticas cotidianas quanto nos âmbitos legislativos e judiciais.

*Camila Belisário é doutoranda e mestre em Antropologia (PPGA/UFF). É integrante do Grupo de Etnografias e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM/UFF) e pesquisadora associada da REMA.

**Júlia Viana Palucci é bacharel e mestranda em Antropologia (UFF), integrante do Grupo de Etnografias e Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades (GEPADIM/UFF) e da REMA.

Edição e revisão: Mariana Pitasse

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