Rosamaria Giatti Carneiro*
Há um ano visitamos a Vila do Boa, localizada em São Sebastião, periferia do Distrito Federal. A vila é um bairro com pouca infraestrutura, já que lhe falta asfalto, saneamento básico e uma Unidade Básica de Saúde com sede própria. As condições de moradia são precárias, assim como a malha e transporte para dali sair e ali chegar. Existe um ar de vida rural.
Voltamos à vila mensalmente a fim de entrevistar cinco famílias de mulheres sobre os impactos da pandemia de Covid-19 em suas vidas a largo prazo. São as mesmas mulheres, com suas novas e antigas histórias, seus conflitos, dores, conquistas e estratégias de sobrevivência. O projeto que ali desenvolvemos busca olhar para o cotidiano duro de mães de crianças pequenas. Mas para minha surpresa, ou não, uma de nossas últimas visitas me fez olhar para a saúde reprodutiva daquelas mulheres quando elas já não podem mais serem mães.
Estávamos na casa de Joana, uma mulher parda de 44 anos, desempregada, que abriga sua mãe e seu sogro doentes em sua casa desde a pandemia e que se preocupa muito com a asma de seu filho, quando me dei conta de que outros momentos da vida reprodutiva das mulheres me afetariam nesta pesquisa. Ela e sua família vivem na rua central da Vila do Boa e, quando a visitamos, em seu quintal, podemos ver a carreta que distribui verduras e legumes para toda a comunidade. Ela já foi cabeleireira e sonha em ter seu próprio salão, mas nos últimos tempos tem se dedicado a cuidar de sua família e ajudar a pagar a dívida que o marido, que está em depressão há anos, adquiriu durante a pandemia. A casa tem vários cômodos construídos ao redor da cozinha sem muito planejamento.
Enquanto conversávamos com Joana e Janete, uma importante líder comunitária da Vila, ao redor da mesa com café e rosca de coco servidas para a nossa equipe, Joana respondeu concomitantemente a nós e ao filho que via televisão na sala; ao marido que saia para a rua em busca de algo e a mãe com Alzheimer que lhe perguntava se já estava na hora de tomar banho. Entre idas e vindas, lhe perguntamos: Qual é o seu sonho, Joana? Ela respondeu: “Eu gostaria muito de colocar meus filhos numa escola particular, para que pudessem mudar de vida”.
Logo em seguida, avançamos e lhe perguntei: “Como você tem dormido?” Ela logo me disse: “Aff … tenho dormido muito mal. Eu acordo com muito calor e demoro muito a dormir de novo”. Naquele instante, me atentei ao fato de que, assim como eu, Joana era uma mulher ao redor dos 45 anos. Pensei, em silêncio: “Ela pode estar na perimenopausa!”. Então, em voz alta, lhe disse: “Por que você acha que isso está acontecendo? Você já procurou o postinho?”
Joana me respondeu dizendo que pensou que pudesse ser a menopausa, mas que não havia procurado ajuda e tampouco a Unidade Básica de Saúde, porque na verdade tudo isso deveria estar relacionado às suas preocupações com a família e com o dinheiro e que também não tinha tempo de procurar ajuda.
Experiências desiguais da menopausa
Saí daquela casa naquele dia ponderando sobre mais essa camada de desigualdade entre as mulheres brancas e pobres, entre as mulheres pobres e periféricas e as que vivem nos centros e pertencem às camadas mais abastadas: cada uma delas certamente viveria (e poderia viver) a perimenopausa ou climatério e a menopausa de maneiras completamente diferentes. Nesse sentido, também quando a reprodução já não é mais possível, há que se pensar na desigualdade social que marca e cunha as experiências reprodutivas e sexuais das mulheres brasileiras.
Como uma mulher branca, de camada média, de 47 anos recém-completos, que circula pelas infindáveis ondas do Instagram, ainda que tenha plena convicção da alienação e normatização sociais que decorrem de seu uso, tenho visto como, pelo algoritmo, inúmeras “mentorias”, “programas”, “métodos” e “influencers” têm se dedicado a menopausa, a nos dizer no que consiste, quando começa e sobre o que devemos fazer para viver essa “travessia”, esse “momento”, “esse estado natural” da vida mulher. Viver uma vida com menos pausa é, por exemplo, um dos slogans que me chegaram para contrapor a ideia da velhice ou da finitude da vida quando a menopausa chega.
A antropóloga americana Emily Martin, em um capítulo específico sobre a menopausa, em “A mulher no Corpo” (2006), comenta que a mulher que não menstrua mais deixa de ter serventia, conforme o modelo por ela construído de que a mulher equivale à máquina, assim como o hospital à fábrica e o bebê à mercadoria. Em sua leitura etnográfica, mas também marxista da reprodução, o útero que não vive mais seus ciclos, é visto como uma máquina fora de uso, que não importa mais. Por isso, a menopausa tem sido pensada como sinônimo de envelhecimento e perecimento da vida.
Ocorre que, como bem pontuam os epidemiologistas e demógrafos, o Brasil também vive uma inversão da pirâmide demográfica. Por isso, nós mulheres, se tivermos acesso à saúde e às condições dignas de sobrevivência, viveremos mais tempo na menopausa, que em nosso país ocorre, em média, entre 48 e 52 anos. Hoje, segundo o IBGE, a expectativa de vida no Brasil para mulheres é de 79,3 anos. Ou seja, as mulheres têm vivido quase a metade de suas vidas menopausadas, trabalhando, buscando prover a vida de suas famílias, lutando diariamente para acessarem melhores condições de vida, driblarem a violência social, racial e estrutural e minimamente buscarem a felicidade. Não se pode mais dizer que uma mulher na menopausa é uma mulher velha e que tampouco ela interessa a vida social e produtiva deste país.
Nesse sentido, o conteúdo midiático e discursivo divulgado no Instagram para mulheres de camadas médias coloca em jogo essa ideia de que a “vida acabou”, mas também por outro, adere a lógica capitalista, ao dizer que sempre se pode ser produtiva, bonita, jovem e bela. Por um lado, questiona a velhice, mas por outro a evita. Dessa maneira, acaba reificando a sua ideia negativa, o que é um imenso desfavor da possibilidade de uma vida digna entre nós. Mas ali, naqueles espaços, páginas, sites, links e imagens, circulam outras informações – que importa dizer – podem sim serem úteis, tais como: quais os sintomas da perimenopausa, quando ela pode começar, quais são as fases dessa etapa da vida da mulher, quanto tempo ela pode durar, etc. Sentir calores noturnos, acordar molhada, sentir dores de cabeça, esquecer-se de nomes, datas e daquilo que pretendia falar, experimentar alterações da pressão arterial, secura vaginal, falta de libido, oscilações de humor, chorar e dar risada a um só tempo, cansaço extremo e tristeza profunda, todos podem ser atribuídos a perimenopausa. Essa fase de travessia, nem sempre fácil, tampouco natural ou tranquila.
Entre as recomendações dessas páginas é preciso fazer atividade física, comer bem, dormir bem e recorrer às práticas integrativas e complementares, como fitoterápicos e técnicas corporais. Vejo que, nova cruzada ou um script de comportamento se estabelece, e então as mulheres “precisam seguir esse caminho”. Ora, nem todas as mulheres podem seguir tais cartilhas, já que muitas – a maioria – não têm condições financeiras, não têm tempo e tampouco amparo e acesso à essas informações. Joana é uma delas e naquele dia, na hierarquia de suas prioridades, colocou-se em último lugar e explicou o calor noturno e tristeza profunda, aos 44 anos, as mazelas sociais e financeiras de sua família. Joana nem se permitiu indagar se estava a viver uma nova fase de sua vida sexual, no limite, essa era uma questão menor e menos urgente do que todas as outras que a circundavam; ainda que por conta desses sintomas, não pudesse mais dormir bem e descansar para viver o dia seguinte.
Transmutar envolve passagem
Diante disso, pergunto-me sobre quais mulheres poderão viver bem a perimenopausa e o climatério, quais delas terão acesso aos medicamentos e terapias que podem lhes trazer mais qualidade de vida? Quais dessas mulheres saberão reconhecer o que se passa em seus corpos, quais terão tempo e informações para tanto? Quantas delas simplesmente não seguirão, preocupadas, sem dormir, e a cuidar daqueles que vivem ao seu redor? Quantas viverão anos achando que “estão enlouquecendo” com as mudanças de humor ou com a névoa mental; que estão tendo picos de pressão com os calores noturnos ou os calores abruptos que vêm e vão durante o dia? Quantas julgarão e culparão a si mesmas pela falta de paciência, quantas se sentirão péssimas mães, avós e parceiras? É certo que, para mulheres periféricas como Joana, a “vida nervosa” é uma perturbação físico-moral, como já bem nos ensinou Luiz Dias Duarte (1986), mas deveria ser também considerada a partir do fim de seu ciclo reprodutivo e das mudanças hormonais de seu corpo que impactam em sua vida.
Sabemos que a saúde e a doença se constituem para muito além do puramente fisiológico e que a bem-estar e a qualidade de vida precisam ser compreendidas a partir de uma amálgama do físico, do psíquico, do emocional e do espiritual. Não podemos reduzir o que se passa no corpo das mulheres à pobreza em que vivem, seus corpos também experimentam ciclos que precisam e deveriam ser observados pelos profissionais de saúde e por toda a sociedade em que vivem e envelhecem. Ao contrastar o mundo que acesso pelas redes e que me insiro ao mundo que Joana naquele dia me apresentou, percebi que também a menopausa resvala para uma hierarquia reprodutiva e sexual.
No Sistema Único de Saúde atualmente não existem serviços específicos para atenção ao climatério/perimenopausa, não existem ambulatórios, capacitações ou técnicas a serem empregadas. Nem mesmo a “reposição hormonal”, terapia de estrogênio e progesterona, é oferecida às mulheres. Na realidade, o hormônio oferecido em alguns pouquíssimos casos é considerado ultrapassado, já que vivemos um momento em que os hormônios bioidênticos trazem melhores resultados e menos contraindicações.
Ou seja, se nas plataformas digitais existe uma profusão (e até confusão) de informações e terapias, para as mulheres sus-dependentes quase nenhuma alternativa parece existir, a não ser a medicalização da saúde mental, já que esses medicamentos sim estão ali em excesso, para depressão, ansiedade e transtornos bipolares. E assim as mulheres, mais uma vez, são consideradas, como canta a música da banda Francisco El Hombre, “tristes, loucas e más”.
Na Umbanda, religião brasileira, Nanã Buruquê é conhecida como a Orixá presente nos lagos e no barro que o cerca, assim como Obaluaê e Omolu, é a avó, a orixá feminina mais velha, que representa a morte, mas também a vida; a doença e a cura: a transmutação. De suas águas paradas, renasce a vida. Transmutar envolve passagem, envolve travessia, assim a perimenopausa e o climatério. De úteros que não ciclam mais, também nascem outras vidas, outras possibilidades de vida.
Em um país com a maioria da população composta por mulheres negras, é fundamental, que nos moldes da cosmologia africana, que as yabas, que as mulheres negras, pobres e periféricas, como Joana, possam experimentar a travessia para esse outro momento de suas vidas com qualidade de vida e que possam também compreender que se trata de uma passagem para outros momentos e pairagens de seus corpos, mentes e emoções. Encerro me perguntando: quando vamos cuidar daquelas que sempre cuidaram de tantos?
*Rosamaria Giatti Carneiro é Antropóloga e Professora na Universidade de Brasília no Departamento de Saúde Coletiva e no Programa de Estudos Comparados sobre as Américas. Co-coordena a CASCA (Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva).
**Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.