No livro Psiquiatria e Antipsiquiatria, David Cooper, que foi um importante psiquiatra e nome do movimento da Antipsiquiatria – tendo ele o cunhado -, diz o seguinte: “Recordo-me de ter pensado, certa vez, que os esquizofrênicos são os poetas estrangulados de nossa época. Talvez esteja próximo o tempo em que nós, que teríamos que tratá-los, tiremos nossas mãos de seus pescoços”.
Nas vizinhanças do 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial, essa afirmação de Cooper me veio à cabeça uma vez mais, me fazendo imaginar ou pensar em tantos pescoços amarrados nos hospitais psiquiátricos; nos gritos estrangulados, nas poesias silenciadas, nas canções abortadas.
Lembro-me aqui também do incontornável Ednardo e da sua inesquecível Enquanto engoma a calça: “Porque cantar parece com não morrer / É igual a não se esquecer / Que a vida é que tem razão”.
A comparação aqui é inevitável. O manicômio é uma instituição de morte, ou de não viver. Ele oculta, ele é irracional. Nele, não se faz poesia e não se canta, efetivamente, afinal, mãos atadas não escrevem, assim como pescoços estrangulados não cantam. Até tentam, mas o som não sai; no máximo, ruídos; balbucios; ou gritos de dor, muitas das vezes dando início a uma marcha fúnebre.
Não morrer, implica perceber – e cantar – que a vida é que tem razão. Só que, em nome da razão ¹- não a razão da vida, mas a da morte -, pescoços são estrangulados, impossibilitados de cantar. E se cantar é não morrer, estrangular pescoços, impedindo-os de cantar, é não viver.
Por isso, a Luta Antimanicomial é uma luta pela retirada das mãos de todos os pescoços. Por isso também, ela não existe sem arte. Ela se faz na, com e pela arte; ela produz arte. Afinal, pescoços livres cantam, declamam; mãos desatadas escrevem; pés soltos dançam.
Da mesma forma, essa luta não se contenta com reformas, já que é a revolução – que será antimanicomial ou não será – que trará o pão, mas também a poesia, a música, o cinema, a dança…
Por fim, evoco aqui a memória de dois pescoços em especial: o de Raquel França de Andrade, um pescoço negro, jovem, com deficiência e pobre; e o de Eva de Oliveira, um pescoço também pobre, mas que sustentava outras cinco cabeças para além da sua, que são seus filhos, dois deles com menos de 18 anos. Que seus cânticos estrangulados, impossibilitados de ressoar, possam ser canalizados nos e pelos pescoços e gargantas de muitos e muitas, fazendo suas vozes serem amplificadas e ouvidas: pelo fechamento de todos os manicômios!
Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais!
1- Alusão ao documentário de Helvécio Ratton, Em nome da razão, que narra e mostra o horror do Hospital Colônia em Barbacena/MG, um dos maiores manicômios da história do país.
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.