Nas últimas semanas, foram noticiadas várias denúncias contra a Clínica Recanto, que fica em Brazlândia, região administrativa do Distrito Federal. No dia 7 de julho, duas adolescentes, de 14 e 17 anos, fugiram da instituição, sendo posteriormente encontradas. Por conta da visibilidade do caso, outras pessoas que foram internadas na Clínica Recanto vieram a público denunciar situações de violações de direitos e violências sofridas enquanto estiveram internadas.
A Clínica, que também é nomeada como Instituto de Psiquiatria e Orientação Psicossocial ou Clínica Recanto de Orientação Psicossocial Eirelli (EPP), tem duas unidades: Brazlândia e Taguatinga.
Considerando as matérias recém publicadas em outros veículos, que contêm relatos de pessoas que ficaram internadas em alguma das unidades, bem como várias denúncias em comentários das notícias publicadas nas redes sociais, fica evidenciado o caráter asilar-manicomial da Clínica Recanto. Para se ter uma ideia, a média das suas avaliações no Google é de 2,2 (de 5). A maioria dos comentários avaliativos é bastante crítica, apontando inúmeros maus tratos.
Este é mais um exemplo do que a Luta Antimanicomial brasileira denuncia desde a sua gênese: as instituições manicomiais, não importam quais, são instituições da violência; a violência é o seu normal; ela diz da sua natureza como instituição (manicomial).
Para piorar, a violência da Clínica Recanto é financiada com dinheiro público, repassado pelo Governo do Distrito Federal (GDF). No site da própria instituição é destacado o “convênio” com a Secretaria de Saúde do DF (SES-DF). Na verdade, o dito “convênio” é um contrato com a SES-DF para internações compulsórias.
De acordo com a antiga Diretoria de Serviços de Saúde Mental (Dissam), que neste ano passou a ser Subsecretaria de Saúde Mental (Susam), o contrato com a Clínica Recanto foi firmado em 2018 pela SES-DF. No documento da Dissam, que é de 2022, afirma-se que o contrato: “contempla 5.852 (cinco mil oitocentas e cinquenta e duas) diárias contratadas no valor de R$ 348,00 (trezentos e quarenta e oito reais) cada, e 49 (quarenta e nove) remoções no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) cada, totalizando um custo mínimo, sem aditivos, de R$ 2.038.946,00 (dois milhões trinta e oito mil e novecentos e quarenta e seis reais) por ano de contrato, destacando que em alguns anos foi necessário o acréscimo de diárias”.
Ou seja, contando os cinco anos de contratualização – de 2018 a 2022 -, temos mais de R$ 10 milhões repassados à Clínica Recanto. E cabe ressaltar que este valor é o mínimo, como é salientado no próprio documento, e que mencionou a necessidade de acréscimo de diárias.
Resumindo, o GDF só de 2018 a 2022 repassou mais de R$ 10 milhões de verba pública para uma instituição que é retratada – por quem ficou internada nela – como “100% cultura manicomial”. Mais de R$ 10 milhões em cinco anos para uma instituição de caráter asilar-manicomial, indo na contramão, mais uma vez, de várias normativas legais, como a Lei 10.216/2001, que diz que: “É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares”.
Soma-se ao descumprimento da Lei 10.216/2001, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, a inobservância da Lei Distrital 975/1995, que fixa diretrizes para a atenção à saúde mental no Distrito Federal e dá outras providências.
A nosso ver, o contrato com a Clínica Recanto desrespeita inúmeros pontos também da referida lei distrital, aos quais frisamos:
- Art. 1º A atenção ao usuário dos serviços de saúde mental será realizada de modo a assegurar o pleno exercício de seus direitos de cidadão, enfatizando-se: I – tratamento humanitário e respeitoso, sem qualquer discriminação […];
- Art. 3º A assistência ao usuário dos serviços de saúde mental será orientada no sentido de uma redução progressiva da utilização de leitos psiquiátricos em clínicas e hospitais especializados, mediante o redirecionamento de recursos, para concomitante desenvolvimento de outras modalidades médico-assistenciais, garantindo-se os princípios de integralidade, descentralização e participação comunitária; § 2º Os leitos psiquiátricos em hospitais e clínicas especializados deverão ser extintos num prazo de 4 (quatro) anos a contar da publicação desta Lei;
- Art. 4º Ficam proibidas, no Distrito Federal, a concessão de autorização para a construção ou funcionamento de novos hospitais e clínicas psiquiátricas especializados e a ampliação da contratação de leitos hospitalares nos já existentes, por parte da Secretaria de Saúde do Distrito Federal.
GDF financia violência
Podemos, então, refletir que a violência praticada pela Clínica Recanto, segundo relatos de quem esteve nela, tem sido chancelada de alguma forma pelo GDF. Logo, se isto está correto, a violência da Clínica Recanto também é do GDF que a financia. Além disso, ao estar na contramão de leis, mais especificamente a Lei 10.216/2001 e a Lei Distrital 975/1995, estamos também falando de uma ilegalidade.
Tudo isso é ainda mais trágico considerando a falta de serviços substitutivos na Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do DF. Como temos há muito denunciado, ela possui a segunda pior cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) habilitados de todas as 27 unidades federativas, e uma série de carências, como, por exemplo, a de leitos em hospitais gerais públicos – e não em instituições privadas e asilares-manicomiais.
Sendo assim, por que, ao invés de transferir milhões de reais de verbas públicas para uma instituição privada e de caráter asilar-manicomial, não investir na implementação de mais leitos em hospitais gerais públicos, em Caps e demais serviços públicos e substitutivos da Raps?
Apenas a título de ilustração, os R$ 10 milhões de reais transferidos para a Clínica Recanto só de 2018 a 2022, são equivalentes ao valor de custeio mensal médio de 15 CAPS do tipo III, que funcionam 24h e possuem leitos para acolhimento noturno.
Cabe ressaltar que para que uma internação compulsória aconteça, ela precisa ser também chancelada pela Defensoria Pública, por meio de judicialização. Contudo, ainda segundo a Lei 10.216/2001, no seu artigo 9°: “A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários”.
A partir das matérias veiculadas e das denúncias, questionamos as condições de segurança da Clínica Recanto, quanto à salvaguarda das pessoas nelas internadas.
Soma-se a isto o fato de que tal instituição interna crianças e adolescentes, com os relatos de violências e maus tratos também indo na contramão do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Sendo assim, fazemos um chamado não só à SES-DF para que finde o contrato com a Clínica Recanto, mas também à Defensoria Pública do DF, de modo que repense as determinações de internações compulsórias, sobretudo considerando as denúncias da Clínica Recanto, assim como o propósito de defesa e promoção dos direitos que ela possui enquanto Defensoria. O chamado se estende a demais órgãos e entidades competentes para que se faça valer a Lei 10.216/2001.
Resguardadas as especificidades, as recentes denúncias contra a Clínica Recanto nos fazem lembrar da Clínica Planalto, que também era uma instituição asilar-manicomial privada do DF, que tinha contrato com a SES-DF e que foi fechada em 2003, após anos de denúncias de violências e irregularidades. Contudo, como afirmamos anteriormente, apesar de fundamental, “o fechamento da Clínica Planalto não alterou a lógica manicomial da saúde mental no DF” – vide o próprio caso da Clínica Recanto.
Por fim, destacamos não ser um acaso que, na mesma semana das denúncias contra a Clínica Recanto, a justiça tenha condenado o GDF a indenizar em R$ 10 mil uma mulher que passou 24 horas amarrada no Hospital São Vicente de Paulo, o manicômio público e ilegal do DF.
A lógica manicomial no DF e sua violência seguem, infelizmente, bastante vivas.
Assim sendo, questionamos: até quando o GDF continuará fomentando esta violência manicomial? Quando a Reforma Psiquiátrica será devidamente respeitada no DF?
Pelo fim de todos os manicômios!
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.