Em nosso último artigo na coluna, abordamos a violência manicomial da Clínica Recanto, a partir de denúncias que foram veiculadas na mídia. Para piorar, tal violência é financiada pelo Governo do Distrito Federal (GDF), sendo, portanto, uma violência também do GDF.
Conforme apontamos:
De acordo com a antiga Diretoria de Serviços de Saúde Mental (Dissam), que neste ano passou a ser Subsecretaria de Saúde Mental (Susam), o contrato com a Clínica Recanto foi firmado em 2018 pela SES-DF. No documento da Dissam, que é de 2022, afirma-se que o contrato: “contempla 5.852 (cinco mil oitocentas e cinquenta e duas) diárias contratadas no valor de R$ 348,00 (trezentos e quarenta e oito reais) cada, e 49 (quarenta e nove) remoções no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais) cada, totalizando um custo mínimo, sem aditivos, de R$ 2.038.946,00 (dois milhões trinta e oito mil e novecentos e quarenta e seis reais) por ano de contrato, destacando que em alguns anos foi necessário o acréscimo de diárias”.
No momento de escrita do artigo, o Portal da Transparência do DF estava fora do ar, não sendo possível a checagem de tais informações. Contudo, logo depois da publicação ele voltou a funcionar, possibilitando nossas buscas. Ao fazê-las, ficamos ainda mais espantados com a realidade.
No ano de 2024, foram R$ 5.713.313,59 transferidos do fundo público do GDF para a Clínica Recanto. Destes, R$ 5.461.985,08 foram diretamente do Fundo de Saúde do Distrito Federal. O restante foi oriundo do Fundo de Assistência à Saúde da Câmara Legislativa do Distrito Federal, num montante de R$ 2.424,56; e do Instituto de Assistência à Saúde dos Servidores do Distrito Federal (INAS), que é uma autarquia que gerencia o Plano de Assistência Suplementar à Saúde (GDF Saúde) para os servidores do Governo do Distrito Federal e a seus dependentes, com repasse de R$ 248.903,95.
Ou seja, 95% do financiamento público da Clínica Recanto pelo GDF é do Fundo de Saúde do DF.
Fundo este que deveria estar sendo utilizado para os serviços públicos de saúde do DF, para a ampliação e fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) no DF. Ao contrário, esse quantitativo milionário está sendo transferido para um serviço privado e manicomial, no caso, a Clínica Recanto.
Como denunciamos em outra coluna, o DF possui um dos maiores complexos industriais manicomiais do país.
Segundo o IEPS, houve uma diminuição na oferta de leitos psiquiátricos privados no DF entre 2013 e 2023, caindo de 516 para 498. Cabe ressaltar que, em 2022, esse número era de 648. Contudo, o DF ainda possui o nono maior quantitativo de leitos psiquiátricos privados das 27 unidades federativas (UFs). Para piorar, considerando o tamanho de sua população, mesmo com a redução, o DF ainda era em 2023 a unidade federativa com a taxa mais alta de leitos psiquiátricos privados do país, junto do estado de Goiás: 17,5 por 100 mil habitantes.
A indústria ou o comércio da loucura no DF está mais vivo do que nunca.
Complexo manicomial
E, como podemos concluir pelo caso da Clínica Recanto, essa indústria da loucura é abastecida pelo GDF. Um financiamento que custeia uma ilegalidade, aliás, desrespeitando a Lei 10.216/2001 e a Lei Distrital 975/1995.
Enquanto isso, o caos na saúde mental impera, com a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do DF sendo uma das mais precárias e carentes do país. Por exemplo, ressaltamos que a cobertura de Centros de Atenção Psicossocial (Caps) habilitados do DF é a segunda pior das 27 unidades federativas.
Tomando como parâmetro os valores de custeio mensal fornecidos pela Secretaria de Saúde do DF, referentes a agosto de 2023, teríamos só com o valor do Fundo de Saúde do DF, um montante suficiente para custear mensalmente 8 Caps do tipo III, que funcionam 24h, fins de semana e feriados e possuem leitos para acolhimento noturno.
Considerando que cada Caps III pode ter até 12 leitos, isso significaria o custeio de 96 leitos em tais serviços que, além de públicos, são substitutivos ao manicômio, pautados no modelo psicossocial.
Se avançarmos para o nível de atenção hospitalar da Raps, o contraste fica ainda mais evidente. Primeiramente, é fundamental ressaltar que quando falamos de cuidado em saúde mental, ele não se restringe à internação. Na grande maioria dos casos, ela nem será necessária.
Contudo, para os casos em que ela é necessária, deve ser de curta ou curtíssima duração, sendo feita em leitos de saúde mental em hospitais gerais. Quem ainda defende leitos psiquiátricos em hospitais psiquiátricos (manicômios) pouco ou nada entende do que é cuidado em saúde mental. Pior, acaba sendo – gostando ou não – defensor da lógica asilar-manicomial.
A Reforma Psiquiátrica e o SUS no Brasil são expressões de um cuidado humanizado, abrangente e que busca superar a violência da lógica asilar-manicomial.
Como não temos disponíveis os valores de custeio de leitos em saúde mental nos Hospitais Gerais do DF, tomamos como base os valores informados pelo Ministério da Saúde ao final de 2022 e fazemos um cálculo aproximativo. De acordo com o Ministério da Saúde, ao final de 2022, tínhamos 322 Hospitais Gerais no país com 1.952 leitos em enfermarias em saúde mental, álcool e outras drogas habilitados e compondo a RAPS, com uma média de 6 leitos para cada Hospital Geral. O custeio anual de todos estes leitos foi de R$ 131.411.216,64, resultando num custo aproximado de R$ 67.321,32 por leito ao ano e de R$ 5.610,11 por mês.
Tomando novamente o montante de R$ 5.461.985,08, destinado do Fundo de Saúde do DF para a Clínica Recanto em 2024, temos que este valor poderia custear por ano aproximadamente 81 leitos em enfermarias em saúde mental, álcool e outras drogas de Hospitais Gerais. Atualmente, o DF só possui 167 leitos, sendo que destes, 122 são leitos psiquiátricos no Hospital São Vicente de Paulo, o manicômio público e ilegal do DF.
Sabemos que a realidade é muito mais complexa do que a realização de cálculos matemáticos. Assim, uma sugestão inicial é a utilização da verba pública destinada à Clínica Recanto para a criação de leitos em Hospitais Gerais. Temos no próprio Fundo de Saúde do DF uma importante fonte para o fortalecimento da Raps no DF e, nisso, do cuidado em saúde mental à população. Basta que ele seja direcionado para os serviços públicos e não manicomiais do SUS.
Com relação ao ano de 2025, ainda de acordo com o Portal da Transparência do DF, do total de R$ 3.495.214,16 empenhados, já foram pagos R$ 3.494.752,39. Destes, R$ 3.476.204,56 são oriundos do Fundo de Saúde do DF (99,5%). Cabe ressaltar que, de acordo com a própria SES-DF, os valores pagos ao final do ano têm sido maiores que a previsão inicial, com acréscimos de diárias no decorrer do ano. Mesmo que tal valor não tenha acréscimos, já são mais de R$ 9 milhões em dois anos!
Essa, aliás, é uma das principais frentes de batalha de quem, de fato, luta pelo cuidado em saúde mental no DF. Quem não defende a Raps, a Reforma Psiquiátrica, o SUS e que o fundo público seja utilizado exclusivamente para os seus serviços substitutivos (ao manicômio), pautados no cuidado em liberdade, no modelo psicossocial, pode estar defendendo a violência ou status e interesses próprios e corporativos. Fiquemos de olho!
Por fim, este caso demonstra, uma vez mais, que o caos na saúde e, nela, na saúde mental do DF não é um acaso, mas é projeto.
Um projeto de desmonte, de terceirização e privatização do SUS e que tem afetado a população do DF, sobretudo a que mais necessita, deixando-a desassistida. No caso da Clínica Recanto, temos não só a desassistência, mas a violência manicomial – e pior, financiada pelo GDF.
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.