Na madrugada deste domingo (31), por volta de 3h, a Comunidade Terapêutica Liberte-se, que fica Núcleo Rural Desembargador Colombo Cerqueira, no Paranoá região administrativa do Distrito Federal, pegou fogo. Com as chamas, se foram cinco homens que nela estavam manicomializados. Outras 11 pessoas estão feridas e em acompanhamento médico.
Segundo relatos de pessoas que estavam manicomializadas na referida Comunidade Terapêutica (CT), o fogo começou quando estavam dormindo. Em meio às chamas, muitos tentaram sair, mas não conseguiram porque todas as portas e janelas estavam trancadas ou gradeadas no momento do incêndio. Formou-se, portanto, uma grande fornalha com gente dentro; gente que nossa sociedade e o Estado pouco se importam, afinal, caso se preocupassem com elas, não permitiriam que as CTs ainda funcionassem. O cenário só não foi pior porque algumas pessoas internadas conseguiram quebrar janelas e salvar outras vidas.
Ora, qual o nome de uma instituição que prende as pessoas, e que não se contenta em restringir ou privá-las do contato com o dito “mundo externo”, mas também as aprisiona dentro da própria instituição e em condições das mais degradantes?
Em alguma hipótese isso pode ser considerado tratamento?
Não à toa, temos caracterizado as CTs como uma mistura de manicômios, prisões, igrejas (no caso da violência religiosa que cometem) e senzalas, ao se pautarem na chamada laborterapia, que concretamente tem sido trabalho forçado, não pago, em condições degradantes e análogo à escravidão.
Não suficiente, a CT Liberte-se funcionava há cinco meses sem alvará e sem a aprovação de licenciamento do Corpo de Bombeiros, que sequer fez a vistoria no local. Testemunhas relataram não ter visto extintores de incêndio em condição de uso no lugar.
Uma vez mais, aqueles e aquelas que defendem o indefensável poderão dizer: tá vendo? Era uma CT clandestina, não uma CT de verdade? Primeiramente, estas perguntas trazem consigo uma monstruosa e inaceitável banalização das mortes ocorridas. Quem as faz, deveria ter vergonha de fazê-las, de sequer pensar nelas.
Além disso, o problema da CT Liberte-se não era “apenas” o fato de ela estar funcionando ilegalmente. Este era um problema adicional, com certeza gravíssimo. Contudo, o problema remete ao fato de ela ser uma Comunidade Terapêutica. Antes de tudo, seu problema está em ela existir. A sua ilegalidade acrescenta camadas de problematicidade àquilo que já “nasce” problemático – e infelizmente tem sido cada vez mais aceito, naturalizado e banalizado em nosso país.
Aliás, justamente por serem instituições da violência, como quaisquer outras instituições manicomiais, as CTs estão mais propensas ao que ocorreu com a CT Liberte-se. Só para se ter uma ideia, na última semana, o Ministério Público da Paraíba (MPPB) publicou matéria dizendo que 164 pessoas foram resgatadas nos últimos dois anos de CTs paraibanas, por estarem sendo mantidas nesses locais contra a vontade, em condições inadequadas e submetidas à violência. Dentre as inúmeras irregularidades encontradas pelo MPPB, uma das mais frequentes foi justamente a ausência do registro legal como CT, junto de problemas na emissão do alvará sanitário ou outras documentações obrigatórias.
Ao que tudo indica, nem sempre uma CT, mas sempre uma CT. Por que será que o que reiteradamente acontece com tais instituições não ocorre nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) e demais serviços públicos e substitutivos (ao manicômio)? Mesmo que neles possam existir, e existam, inúmeros problemas e contradições – muitos deles decorrentes do fato de que estão sendo atacados, desmontados, precarizados, face ao fomento de instituições privadas e manicomiais como as CTs.
Quem sustenta as CTs?
Eis um dos – vários – motivos para que o cuidado a pessoas com necessidades associadas ao consumo de álcool e outras drogas deve ser feito em serviços públicos e não-manicomiais. Novamente, os defensores e as defensoras do indefensável podem questionar: mas estes serviços estão à disposição de quem necessita e em quantidade adequada. A resposta, infelizmente, é um rotundo não. Segundo dados do Ministério da Saúde, temos apenas 496 CAPSad e somente 86 Unidades de Acolhimento (UAs) em todo o país.
A questão aqui é que quanto mais nós aceitamos, normalizamos e, pior, quanto mais o Estado brasileiro financia as CTs, mais estamos deslegitimando e enfraquecendo os serviços públicos e substitutivos.
Esse enfraquecimento e deslegitimação vai desde a dimensão econômica, já que boa parte do dinheiro que sustenta e fortalece as CTs vem do próprio Estado brasileiro, nos níveis municipal, estadual e distrital e federal, ao passo que são retirados dos serviços públicos aos quais deveriam ser destinados.
Em suma, um dos motivos de não termos tantos CAPsad, UAs e demais serviços, sejam eles do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e demais políticas sociais, é justamente a transferência do fundo público destes serviços para fomentar as CTs. Contudo, a deslegitimação se expressa também na esfera ideológica, em que cada vez mais aquilo que é violência se apresenta e é entendido como assistência, como cuidado. Logo, essa violência é banalizada, é ocultada, é aceita.
Dizemos isto com todo o cuidado e sensibilidade no que se refere às famílias e indivíduos que se encontram por vezes desesperados, em condições nas quais se necessita de alguma assistência, mas ela não aparece ou é encontrada nas políticas sociais, no SUS, no SUAS, na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) etc.
Não é de nosso feitio personalizar debates complexos, muito menos à dimensão moral, que ao fim e ao cabo tende a culpabilizar indivíduos que basicamente estão tendo seus direitos negados, como o da assistência em saúde (mental). Os dedos a se apontar aqui são principalmente ao Estado e a quem rege essa máquina de moer gente, permitindo que tudo isso aconteça, seja pela ausência proposital ou pelo fomento a essa lógica asilar-manicomial via CTs.
E mais, se colocam àqueles e àquelas que lucram com ela – os empresários e mercadores desta nova-velha indústria da loucura ou complexo industrial-manicomial que se sofistica e amplia via CTs. Não à toa, estes costumam também lucrar com a mercantilização da fé, que anda de mãos dadas com o avanço fundamentalista em nosso país.
Tenho certeza de que existem muitas pessoas bem-intencionadas acreditando que s CTs são uma resposta a quem necessita de assistência por conta do uso problemático de drogas. Também acredito que há casos de pessoas que, ao passarem por CTs, pararam de usar drogas, com a abstinência implicando em melhores condições de vida.
A questão é que mesmo nestes casos, em que a pessoa manicomializada nas CTs possa ter cessado o uso de drogas, isso se deu e se dá às custas da violência inerente às CTs e sua lógica asilar-manicomial (aliado a outros de seus atributos violentos). Uma violência que por vezes se oculta, se mistifica, como é o caso da laborterapia, em que se força a trabalhar e se apropria do resultado deste trabalho com uma retórica de que o trabalho dignifica, que salva. Ou que obriga as pessoas a professarem uma fé que não a sua, mas lendo tudo isso como sendo necessário justamente para a tal salvação. Ou mesmo aquelas violências que não têm nada de sutis, mas que são relativizadas ou não vistas como violências, já que são destinadas a indivíduos que nem gente são ou que são sub-humanos, isto é, não são tão humanos assim.
Portanto, o que temos é uma máxima extremamente perigosa em que o dito objetivo – que é a abstinência das drogas – faz com que tudo seja permitido para que ele seja alcançado. Temos aqui a máxima de que os fins justificam os meios, e que abre brechas para outras lógicas igualmente violentas, fundamentalistas, quando não as reproduz ou já não as são concretamente. Não suficiente, reproduzimos com ela que o sujeito é a droga, e os sujeitos reais passam a ser meros objetos – e objetos desvalorizados, já que são “drogados”, “cracudos”, “pecadores”, “fracos” etc. Parece que o único “direito” destes indivíduos tornados coisas é o direito a não ter direitos.
Nesta tragédia não só anunciada, mas denunciada – e que, portanto, nada tem de tragédia – o próprio nome da CT, Liberte-se, nos traz, para além de perversidade, um ensinamento doloroso de que é o cuidado em liberdade que, realmente, liberta!
Justiça por Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos e toda solidariedade a suas famílias e amigos!
Pelo fim das Comunidades Terapêuticas!
Por uma sociedade sem manicômios!
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*Pedro Costa é membro do Grupo Saúde Mental de Militância do Distrito Federal UnB.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.