2025. A América Latina vive tempos complicados. A paz, a soberania e a democracia estão ameaçadas e em convulsão em diferentes países. No Brasil não está sendo diferente nos últimos tempos. O julgamento da trama golpista, ainda em andamento, e com tudo que ela significa historicamente, parece ser, felizmente, um alento de que os tempos estão voltando a ser (mais) normais, com sinais de esperança e de um futuro mais tranquilo.
Posso dizer que, de fato, nasci para a vida e para o mundo, e para a consciência política, em setembro de 1973, quando houve o golpe militar no Chile e o assassinato do presidente chileno Salvador Allende, democraticamente eleito em 1970, inaugurando, ou ampliando, a democracia e a primavera na América Latina, mas em tempos de ditadura no Brasil.
Assim parecia, em 1970 e nos primeiros anos do governo Allende, que abrigava perseguidos e exilados brasileiros. Eu, então um jovem de 22 anos, que há apenas há dois anos tinha chegado, em Porto Alegre, capital gaúcha em 1971, onde tinha estado, de visita, apenas uma única vez, estava cursando a Faculdade de Teologia na PUCRS, em Porto Alegre. E era o responsável pelo Mural da Faculdade, que estava montado nos corredores do quinto andar do prédio 5 da Universidade, como já tinha sido o responsável pelo Mural O OBSERVADOR, anos antes, no Seminário dos franciscanos em Taquari (RS).
E poetava, a principal atividade de vida, além do estudo e da vida franciscana. Consegui espaço no Caderno de Sábado do Correio do Povo, onde publicava meus poemas, entre outros espaços Brasil afora, além de participar de todos os Concursos de poesia que apareciam.
Foi o que aconteceu com o Concurso internacional do centenário de publicação do lendário Martín Fierro, do argentino José Hernández, em 1972. Fui o vencedor do importante Concurso, cujo prêmio, em dinheiro, foi pago pelas Aerolineas Argentinas. O longo poema foi publicado então no Caderno de Sábado, e agora está no Em Mãos IV, recentemente lançado, na página 70.
José Hernández diz, em Martín Fierro: “Aqui me pongo a cantar/ al compás de la vigüela/ que el hombre que lo desvela/ uma pena extraordinária/ como la ave solitária/ com el cantar se consuela”
E vai uma parte do Canto a Martín Fierro, escrito em 1972, um momento histórico, para nunca mais esquecer, e em tempos em que se festeja no Rio Grande do Sul a Semana Farroupilha:
“IV. A estrada não se estende./ Estende-se o pampa às patas do cavalo,/ o verde plano,/ o campo, o espaço./
A estrada não se estende./ Estende-se o pampa que não vê limite,/não conhece fechamento./ Abrem-se pastagens, formas de terra,/ onde o homem cresce/ e fundamenta o corpo./
A estrada não se estende./ Estende-se o gaúcho,/ as boleadeiras,/ crinas ao vento,/ o vigor do galope e da tropeada./
A estrada não se estende./ Estende-se o pampa,/ a amabilidade,/ porta que recebe o visitante,/ acolhe sua fome,/ seu cansaço,/ hospitalidade.
A estrada não se estende./ Estende-se o pampa/ na revelação do homem,/ no canto do poeta que cruza o campo,/ minuano que troteia de cabeça erguida,/ profeta.”
Era minha consciência latino-americana, de então, em 1972, recém chegado em Porto Alegre, quase guri, de 21 anos. A consciência latino-americana alargou-se em 1973, com o golpe no Chile, o assassinato de Salvador Allende, presidente eleito democraticamente. Fim da democracia chilena, as brasileiras e brasileiros acolhidos na pátria latino-americana tiveram que fugir rapidamente da ditadura de Pinochet, apoiada pela ditadura brasileira. Os tempos de paz e democracia terminaram.
O poema, publicado em setembro de 1973 no mural da Faculdade de Teologia, deu alento à luta e à consciência de um novo movimento estudantil na PUCRS, mas teve enormes consequências nos anos seguintes. Acabei expulso da PUCRS no final de 1975.
Hora de lembrar e celebrar Allende, a boa luta e a democracia latino-americana.
ALLENDE VIVE
Uma bala mata o homem.
Uma bala não mata a ideia.
Os dias são muitos, incandescentes.
Ardem na poeira do tempo.
Nada como as horas que se sucedem,
os minutos e segundos,
as batidas do coração que abraçam milhões.
Sonhos são para serem sonhados.
Sonhos iluminam o horizonte.
Sonhos são eternos.
Há um tempo para cada coisa.
Há um tempo para a morte.
Há um tempo para a vida.
Latino-americanamente,
Caribenhamente,
sobrevivemos.
Brasileiramente,
vivemos e ressuscitamos Allende
a cada dia, todos os dias.
Viva a democracia!
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.