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Carolina Maria de Jesus: para ler em julho e em todos os outros meses do ano.

Leia Carolina Maria de Jesus, intérprete do Brasil!

Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconsciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. Passei o dia escrevendo. 
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, 1958

    Em 2021, a sensação é que todas/os nós estamos um pouco como Carolina Maria de Jesus, tristes, nervosas/os, com vontade de chorar e de sair correndo sem parar. Por motivos diversos, como os dela – fome, miséria, desemprego; ou diferentes – luto pelas milhares de mortes recentes, apreensão pelo futuro próximo, preocupação com quem está sofrendo, raiva dos que nos colocaram nessa situação… No entanto, nesse trecho e em muitos outros de sua vasta obra, a escritora mostra como recorria à leitura e à escrita, tanto nos momentos difíceis como nos de alegria. Penso nela enquanto reflito sobre porque escrever uma coluna no Brasil de Fato/PB com dicas de leitura, de filmes, de músicas… e me pergunto se não é futilidade demais. E lembro que a arte salva.

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Sou professora e escrevo textos acadêmicos, que circulam entre pessoas que trabalham no mesmo universo que eu. Fora esses, alguma produção para docentes da educação básica; coluna a convite de alguém, como o texto publicado na coluna História Pública e Narrativas Afro-Atlânticas; e eventuais materiais de divulgação.  

Em uma aula no curso de formação sobre racismo e anti-racismo, parceria NEABI/SECAMPO e transmitida pelo canal do Brasil de Fato/PB, fiz algo que é comum tanto na minha prática didática quanto na vida privada, que é dar dicas de literatura, sugerindo como usar (ou não usar) determinadas obras, indicando a leitura pelo prazer, pela fruição… Isso provocou o convite para esta coluna mensal, que se inicia este mês. Escrever publicamente sobre temas que não são os que pesquiso, e fora do ambiente universitário, é um desafio. Espero que seja prazeroso e gratificante. 

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Minha opção é iniciar com Carolina Maria de Jesus. Desde 1992, um encontro internacional de mulheres negras latinas instituiu 25/07 como o Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha. Uma série de eventos, textos e ações acontecem durante todo o mês de julho com o objetivo de dar visibilidade à luta das mulheres negras contra opressões de gênero, exploração e racismo. Nada melhor do que aproveitar para lembrar a importância de Carolina Maria de Jesus, que deve ser lida neste e em todos os meses do ano! 

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Carolina Maria de Jesus nasceu em 1913 no interior de Minas Gerais e viveu sua vida adulta na capital de São Paulo, onde morreu em 1977. Conhecida como “Cinderela Negra” ou “escritora favelada”, a escritora ganhou notoriedade com o livro Quarto de Despejo – Diário de uma favelada, publicado pela primeira vez em 1960. Depois de obter fama e prestígio com a publicação, a escritora morreu pobre e sua obra caiu no esquecimento. Recentemente ela começou a ser retomada pelo feminismo negro e vem sendo reeditada e alvo de incontáveis pesquisas nas mais diferentes áreas. Sua produção pode ser encontrada em livrarias, sebos, páginas da internet, e circulam em arquivos compartilhados.

A história do livro é bastante conhecida: um jornalista fazia uma reportagem sobre uma favela paulistana, quando foi abordado por uma moradora, que lhe entregou seus diários, escritos em papéis que recolhia durante o trabalho como catadora de recicláveis. Ele os editou, publicou e o livro alcançou um sucesso estrondoso, sendo traduzido para cerca de 13 idiomas e publicado em mais de 40 países. Temas como a vida na favela, a fome, a criação de filhos, a política partidária, a pobreza, o racismo, os desafios em ser mulher, os sonhos de uma brasileira, estão presentes nesse texto. Não é um livro para ser lido pelo “exotismo”, pela curiosidade em conhecer a voz de uma mulher que passa fome e vive no “quarto de despejo” da sociedade. Carolina é uma intelectual que não apenas narra sua vida, mas apresenta reflexões profundas sobre a sociedade brasileira, como podemos ver nesta passagem: 

Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosta de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, tenho nada com estas desorganizações (Quarto de Despejo, 1960).

Mas a produção de Carolina Maria de Jesus não se resume a seu livro mais famoso. Depois de conhecê-lo, convido a todas/os à leitura de outras obras como Diário de Bitita (1982), na qual ela narra sua infância e Casa de Alvenaria (1961), diário de sua vida após o sucesso com a primeira obra publicada, que a possibilitou mudar para a tão sonhada casa de alvenaria e onde continua refletindo sobre questões de raça e classe a partir da perspectiva de “ex-favelada”, continuação do título. 

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A obra da escritora é indicada para quem deseja refletir sobre pobreza, racismo, desigualdade social, opressões de gênero, enfim, sobre o Brasil. Pode ser usada por pesquisadoras/es das mais diversas temáticas, docentes da educação básica e do ensino superior, ou simplesmente por todos e todas que desejem enfrentar o desafio de entender e transformar a sociedade brasileira. Para quem deseja aprofundar o contato com a escritora e ter acesso a materiais diversos, sugiro consultar o Projeto Vida por Escrito. Aproveite enquanto navega pelo site e se delicia com o material ali disponibilizado, para ouvir o álbum de samba gravado por Carolina, em que ela canta suas próprias composições. 

Leia Carolina Maria de Jesus, intérprete do Brasil!
 

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