Ouça a Rádio BdF
Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS

Primeiro de maio…

Pensar o que significa o primeiro de maio de 2025 é reconhecer a necessidade de um outro jogo, um outro modo de viver

… dia símbolo da luta por direitos trabalhistas. Em 2025, dia marcado por mobilizações populares pela redução do tempo de trabalho e pela ânsia provocada por recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), que retiram a possibilidade de a Justiça do Trabalho decidir sobre a existência de vínculo de emprego.

Uma sensação de iminência do caos, como se tudo estivesse bem até pouco tempo atrás e, de repente, o mundo do trabalho tenha sido precipitado em uma escala vertiginosa de violência institucional. Começou com o golpe de 2016, dizem alguns. A “reforma” de 2017 deu início a esse processo, afirmam outros.

A realidade é que a estrada que nos trouxe até aqui é muito mais longa e foi pavimentada por condutas, decisões, propagandas que historicamente naturalizam o desrespeito aos direitos trabalhistas.

Nosso desafio, ao pensar o que significa o primeiro de maio de 2025, não se resume a construir formas de resistência contra o esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho, nem tampouco em eleger um inimigo comum, dentro ou fora do Poder Judiciário. Não é sobre tomar o poder, nem ditar novas regras para o mesmo jogo. Trata-se de reconhecer a necessidade de um outro jogo, um outro modo de viver. Trata-se da luta por outro projeto. E nem me refiro à necessária contrariedade óbvia ao projeto neoliberal, mas a algo muito mais antigo, profundo, violento: o projeto da “modernidade”. Isso que chamamos capitalismo.

 A luta pelo fim da chamada escala 6×1 traz uma lição importante: recuperar o tempo exaurido pelo trabalho assalariado é apenas um passo na direção da construção de uma realidade diversa daquela em que hoje estamos. Entender que precisamos, urgentemente, de outra forma de sociabilidade, em que o trabalho não seja sinônimo de sofrimento, passa por perceber que há uma razão para que ainda se profiram decisões como aquela que retirou de Maria Cecília a possibilidade de receber saldo de salário e aviso prévio.

Não é desconhecimento, nem dificuldade de compreensão das regras do jogo. O fato é que a maioria das pessoas ainda vive sob a ilusão de que o progresso e as possibilidades de uma vida boa serão alcançados se seguirmos apostando no capitalismo. Bem, quando olhamos em volta, o que vemos é destruição: do ambiente, dos laços sociais, das vidas esgotadas pelo trabalho. O que essa racionalidade tem produzido, cada vez mais, são discursos fanáticos, terraplanistas, belicosos, desconectados da realidade.

Isto, porém, não produz reconhecimento imediato de que precisamos de uma transformação profunda e radical. É que são séculos de convencimento de que liberdade é sinônimo de autonomia e se revela, nas relações sociais, pela nossa capacidade (na real, necessidade) de trabalhar em troca de salário. Nesse projeto, não há espaço para direitos sociais, pois somos indivíduos proprietários que se relacionam por meio de contratos que pressupõem sujeitos livres e iguais. Logo, é nossa responsabilidade triunfar entre nossos “pares”.

Essa é uma premissa importante e embora possa parecer intuitiva, dificilmente é considerada, em sua profundidade, para a análise e o enfrentamento das violências reiteradamente praticadas contra a classe trabalhadora. Comemorar – recordar juntas – o significado do primeiro de maio passa por compreender o que efetivamente está em jogo, quando lutamos pela efetividade de direitos trabalhistas e, consequentemente, porque há tanta dificuldade em reconhecer condições materiais de existência à classe trabalhadora.

Afinal, o discurso que a classe trabalhadora torna realidade com suas greves e disputas políticas (que chamamos Direito do Trabalho) constitui uma realidade duramente arrancada do capital. Pela primeira vez, admite-se a inexistência de autonomia em uma relação jurídica que é condição de possibilidade para todas as outras. Evidencia-se a mentira: não somos livres; nem autônomos; nem iguais.

Sem proteção social, há exaurimento das forças físicas e mentais; não há consumo; não há condições de sociabilidade.

Exatamente porque o discurso da modernidade é, em sua essência, incompatível com direitos sociais, o Direito do Trabalho sempre – sempre, sem exceção – foi combatido, esvaziado, destituído de sentido, seja nos ambientes de trabalho, seja no sistema de justiça. Punições sem previsão legal, interpretações que restringem, mitigam ou suprimem direitos previstos na Constituição, desrespeito contumaz à ordem jurídica trabalhista costumam ser tolerados, considerados meras irregularidades ou inadimplementos contratuais. Talvez o exemplo recente mais simbólico seja o termo de ajuste de conduta firmado no Rio Grande do Sul com empresas surpreendidas a explorar trabalho escravizado. Não houve expropriação, como estabelece a Constituição. As pessoas, por suas empresas, escravizaram, mas seguiram empreendendo e lucrando.

A questão é que quem comanda a empresa, quem formula o pedido e quem profere a decisão estão imersos – desde que nascem – em uma cultura que os convence de que todas as pessoas são livres e iguais, proprietárias da força de trabalho. Essa ideologia profundamente estabelecida e disseminada em todas as instâncias do nosso convívio social gera uma aversão quase natural à proteção social trabalhista. Uma condescendência com o desrespeito a esses direitos, a ponto de tolerarmos que uma empresa escravista siga funcionando ou de criarmos teorias para justificar algumas formas de terceirização. Bem, compreender isso faz parte da nossa tarefa histórica nessa luta coletiva, cuja memória é celebrada no primeiro de maio.

E para isso é necessário ter presente a condição central que o discurso de racialização dos corpos assume na modernidade. Se não percebemos que há um outro capitalismo a partir da colonização, que define uma posição subalterna para os corpos racializados, instaurando o pressuposto da extração de trabalho sem salário, dificilmente compreenderemos porque sindicatos compactuam com normas coletivas que restringem ou retiram direitos; porque é comum pessoas trabalhadoras pedirem “desculpa por qualquer coisa” em audiências trabalhistas; porque não pagar salário tem custo significativamente inferior a atrasar o pagamento da fatura do cartão de crédito.

A aceitação da perversidade da terceirização; a discussão sobre uma suposta “possibilidade de pejotizar” ou a afirmação de que o trabalhador deve notificar o ente público, quando a empresa que o contratou atrasar seu salário, não decorrem de uma ignorância quanto ao conteúdo da relação de emprego ou quanto ao objetivo do Direito do Trabalho. Decorrem de uma visão de mundo coerente com o propósito de uma sociedade em que o objetivo da vida é o acúmulo da riqueza material; os seres viventes são objetos de fruição humana e nossos corpos, especialmente se forem negros, são mercadorias descartáveis. Coerente com a noção do sujeito propriedade de si e, sobretudo, com a ideia de que, em países colonizados, quem vive do trabalho pode ser considerado um sujeito propriedade do outro.

Em segundo lugar, é preciso reconhecer/estudar/aprofundar nossa compreensão sobre o caráter patriarcal da sociedade. Não é um acaso que governos autoritários estejam alinhados a um discurso de ódio às mulheres, de submissão e dominação. A decisão unânime da Suprema Corte do Reino Unido, referindo que a definição legal de mulher é baseada no sexo biológico e, especialmente, a euforia das feministas que militaram para que esse resultado fosse obtido, é talvez o exemplo do caráter misógino do capitalismo, exatamente porque trata do corpo.

Quando se afirma que só é mulher quem nasceu com genitália feminina há uma profissão de fé em um sistema, pelo qual as mulheres têm função social específica, que passa pela possibilidade biológica de produzir novos corpos, destinados a passarem toda a vida trocando trabalho por capital. Há, portanto, uma definição de mulher que atribui determinada função social a esses corpos: cuidar; parir; obedecer.

Essa é uma questão política fundamental.

Afinal, não há capitalismo que se sustente, se começarmos a pensar os corpos como lugares que habitamos, distintos entre si e capazes, todos eles, de produzir vida, de cuidar, de fazer circular afetos. Se a diferença e a pluralidade de fisiologias e relações afetivas for incentivada, em vez de ser punida.

Não podemos esquecer que havia aqui outros modos de sociabilidade. O que chamamos capitalismo é algo imposto, contraintuitivo e acima de tudo produtor de morte. Morte dos corpos escravizados, dos corpos (femininos) dominados; dos seres de outras espécies, das águas dos rios, da espiritualidade. Morte dos laços sociais. Morte, da qual os feminicídios ocorridos recentemente em Porto Alegre são apenas a face mais evidente.

O sentimento de posse que autoriza a eliminação de um corpo é resultado do mesmo discurso. Se até nosso corpo é passível de venda (por salário), todo o resto também deve ser. Se nosso corpo nos pertence, pode ser concedido ao outro por contrato (de namoro, de casamento, de filiação). E se é de propriedade que se trata, eliminá-la é uma escolha legítima de quem se entende dono. Que sejam os homens a matar, também não deve nos surpreender. Para exercer a masculinidade em um contexto moderno, é preciso prover, mandar, controlar e deter a posse do que lhe pertence.

Isso tem tudo a ver com o Direito do Trabalho.

O reconhecimento da necessidade de proteção social é um contraponto à racionalidade moderna, na medida em que se reconhece que colocar o corpo à disposição de outro, em troca de dinheiro, não constitui uma escolha. Com isso, produz-se uma fissura importante. A modernidade, afinal de contas, fundamenta-se na ideia de um sujeito autônomo e proprietário, que vende uma mercadoria de que dispõe. No uso do trabalho escravizado e feminino como fontes invisibilizadas de valor e riqueza. O Direito do Trabalho expõe, de modo proposital ou não – pouco importa –, que não há autonomia; que a escravização convive com o assalariamento; que o que chamam afeto, nós mulheres chamamos trabalho, como escreve Silvia Federici. Tudo isso desvela-se na imperatividade das regras trabalhistas. Defender a efetividade dos direitos trabalhistas, portanto, é explicitar essas contradições.

Então, primeiro de maio deve representar um momento em que seja possível refletir, produzir teoria e insistir, nos diferentes âmbitos da vida social, na necessidade de radicalização da proteção social.

Concretamente, implica defender essa proteção para todas as pessoas que vivem do trabalho e hoje são tratadas juridicamente como empreendedoras de si; militar pela redução efetiva do tempo de trabalho com o fim da “escala 6×1”, mas também contra o “banco de horas”. Implica garantir o dever de motivação da despedida e reconhecer a inconstitucionalidade da justa causa, além de buscar a eliminação de todas as formas de terceirização. Implica a revogação integral da chamada “reforma” trabalhista e reconhecer a necessidade de pautarmos novos direitos, como, por exemplo, o de não trabalhar em dias de calor extremo ou tempestades. Menos que isto é compactuar. Menos que isto é pavimentar a estrada para o caos.

Reclamar apenas não é uma opção; é preciso agir.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Veja mais