A música com esse título sempre me acompanha, quando a vida se faz sentir com intensidade. Nestes últimos dias, dois colegas da Justiça do Trabalho faleceram precocemente. Não puderam envelhecer.
A vida é rara e efêmera, escorre pelas mãos, e não há tempo que volte, como canta Lulu Santos. Por isso, a morte sempre nos interpela sobre o sentido do que estamos fazendo por aqui. Pensar sobre a brevidade desse intervalo entre nascimento e morte é necessariamente pensar sobre tempo de trabalho.
E tempo de trabalho é tempo de vida. É o tempo que não temos para todo o resto.
Interpelada pelo estranho sentimento que causa a ausência definitiva de pessoas que, mesmo não sendo tão próximas, faziam parte do cenário cotidiano da vida no trabalho, lembrei de uma audiência que me causou sofrimento.
A prova versava sobre o pedido de rescisão indireta. A trabalhadora precisava comprovar o que tornou insuportável trabalhar em um ambiente hospitalar. Eis aí, de plano, um problema que a maioria das pessoas no sistema de justiça não encara com a seriedade necessária.
Por que trabalhadoras e trabalhadores precisam ajuizar ação trabalhista e produzir prova de que o trabalho se tornou insuportável? Por que a regra do jogo, ainda hoje, é de que o “pedido de demissão” é também a declaração de renúncia a direitos que são necessários para sobreviver com dignidade?
Afinal, o empregador, se despede alguém, com ou sem motivo, não sofre consequências econômicas ou jurídicas. Tem os mesmos deveres. E, se cometer falta grave, não perde coisa alguma. Ao contrário, ganha o tempo da demanda judicial; a espera pela prova da falta grave. Até o final do processo, o empregador, em regra, não paga a rescisão. Por outro lado, a necessidade de discutir em juízo a possibilidade de extinguir o vínculo e receber os direitos que daí decorrem implica sempre supressão de direitos fundamentais, pois na melhor das hipóteses, provada a rescisão indireta, o que se recebe – muito tempo depois – é o mesmo valor que seria recebido em dez dias, se houvesse despedida. Só que haverá ainda a necessidade de pagar pelo trabalho do profissional que atuou no processo. Portanto, o que se recebe é menos do que se receberia em caso de despedida.
Do modo como está, a regra trabalhista faz com que seja mais vantajoso economicamente ao empregador praticar falta grave do que despedir sem motivação. Uma aberração que, entretanto, nunca foi declarada inconstitucional. Uma incoerência que só pôde ser naturalizada, em razão da profunda visão escravista que estrutura nosso convívio social.
Essa violência objetiva sequer vem aos autos, na maioria expressiva dos casos em que se discute falta grave do empregador. Está de tal modo naturalizada, que boa parte da classe trabalhadora e da advocacia que a representa não se insurge contra ela.
Não foi diferente no caso de que me lembrei, nem foi por isso que ele me veio à mente. Naquele caso, a principal alegação para a rescisão indireta era a jornada excessiva e foi exatamente aí que meu pensamento engatou.
Essa foi a questão que me fez conectar fatos aparentemente tão desvinculados. O tempo da vida é o tempo utilizado para o trabalho.
No caso da instrução a que estou me referindo, a alegação era de jornada de 12h com realização habitual de horas extras.
Trabalhar 12h deveria ser, por si só, razão capaz de justificar o término do vínculo por culpa do empregador que, afinal de contas, está burlando a ordem constitucional e, consequentemente, tomando trabalho sem pagamento. Sim, pois se contrata para trabalhar 6h ou 8h por dia (esses são os limites na Constituição) e toma 12h, está em realidade usando 6h ou 4h da vida da trabalhadora, sem remunerar. É sempre bom lembrar que a folga não remunera. Apenas compensa a fadiga. Então, pouco importa que haja folga, há também trabalho não remunerado.
Não era essa, porém, a alegação para a falta grave. Era a extensão da jornada por até 18h consecutivas!
Jornada de 18h em um dia que tem 24h. O que sobra para dormir, comer, interagir, viver fora do trabalho? Como é possível que em 2025 essa seja a realidade trazida aos autos com uma tranquilidade perturbadora? Todas as pessoas confirmaram, partes e testemunhas: de vez em quando as enfermeiras trabalham 18h seguidas.
O que mais me entristeceu nessa sessão de audiência foi a naturalidade com que esse regime absurdo de tempo de trabalho foi enunciado. Em algum momento da audiência alguém afirmou: são as próprias trabalhadoras que desejam fazer horas extras.
Será mesmo uma opção? E, sendo uma escolha, é válida da perspectiva de uma sociedade que se diz organizada a partir do objetivo de preservação da dignidade e busca do bem comum?
Durante a instrução, houve a pergunta: a reclamante presta serviços em outro hospital? O motivo, porém, não era sublinhar o quanto uma jornada extensa pode ser prejudicial à vida, especialmente quando a pessoa se submete a dois ou mais vínculos de emprego, para poder sobreviver com decência. Ou alguém realmente acha que trabalhar em dois ou mais hospitais é “escolha” feita pela vontade genuína de trabalhar, mais e mais? Ao contrário, a pergunta foi feita para demonstrar que, se trabalhava também em outro local, é porque a trabalhadora podia dar conta do tempo exigido pela reclamada. Ou seja, de que não havia motivo para a declaração da rescisão indireta de um vínculo de mais de 20 anos, apenas porque algumas jornadas chegavam a 18h consecutivas.
Um hospital é um ambiente em que a atenção e o cuidado constituem a diferença entre viver ou morrer. Trabalhar nesse ambiente por 12h consecutivas já deveria ser escandaloso. O argumento de que isso ocorre também em outras instituições e de que as trabalhadoras escolhem estender a jornada para melhorar a remuneração é obsceno.
Faço essas referências porque me parecem bastante significativas da violência contra o tempo de vida dessa trabalhadora. Há uma assimilação da possibilidade de usurpação da sua temporalidade que assusta.
Bem, essa realidade de extensão da jornada não está apenas nos ambientes hospitalares. Está na iniciativa privada, inclusive nas tantas hipóteses de trabalho realizado por empregados que sequer têm a CTPS assinada. Está também na Justiça do Trabalho. A gestão empresarial a que o Poder Judiciário se submete, pelo menos desde a ampla reforma representada pela Emenda Constitucional 45, ao instaurar a política de metas baseada na quantidade, tem promovido sofrimento e intensificação na carga de trabalho para servidoras e servidores.
As medalhas e prêmios distribuídos como compensação para a intensificação e o prolongamento do tempo de trabalho apenas aprofundam a violência dessa forma de gestão.
Percebi, então, porque lembrei dessa audiência, quando a notícia da segunda morte precoce, na mesma semana, apareceu em uma mensagem no celular.
Tudo isso é sobre o tempo que falta para perceber que não temos esse tempo para perder.
A morte inesperada de alguém jovem atualiza a realidade do tempo não remunerado que trabalhadoras como a reclamante da audiência de que me lembrei entregam a quem as contrata. E que nós entregamos todos os dias a um sistema de justiça que está em crise de identidade, porque seus atores não conseguem mais se espantar, se indignar com a barbárie.
Não há justificativa racional que dê conta de explicar a naturalização dessa realidade. Para viver em uma sociedade com o mínimo de decência, não pode haver tolerância com essa forma de apropriação do tempo.
Há um mesmo doloroso caminho, que parte da naturalização dos abusos no ambiente de trabalho e chega até o exaurimento da vida, em práticas ecocidas e genocidas, como as que hoje se multiplicam.
São variações do mesmo tema. É de morte que se trata, de eliminar o tempo de vida, de impedir o cuidado. Quando alguém desaparece de modo precoce, é impossível não pensar nisso. Mas não basta pensar, é preciso implicar-se. Reconhecer a violência dessas práticas; repudiá-las. É urgente mudar. Não servem medalhas, exéquias, postagens. É de vida que se trata. É a força da vida que precisamos honrar, nas audiências, nas decisões e, sobretudo, nos ambientes de trabalho.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.