Este foi o título de um painel de que participei, no encontro de direito sindical da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas (Abrat), em Maceió. Fiz a viagem acompanhada do livro Fragmentos de Memórias Malditas, de Cecília Coimbra. Um texto impressionante, perturbador.
O registro da memória do horror da sua prisão e tortura, à época da ditadura civil-militar, convive nas páginas do livro com a evocação constante da força da vida que insiste, mesmo nos momentos mais pavorosos e absurdos.
Fiz a leitura chorando, com a sensação de estar subvertendo o tempo. Afinal, era o passado e, ao mesmo tempo, a atualidade de todas que sofrem os efeitos de governos autoritários. O futuro, que todos os dias se torna presente em histórias de pessoas sequestradas, presas, torturadas ou mortas, por desafiarem as regras de quem está no poder.
A história de Cecília afetou profundamente meu humor. Dominei a vontade de pegar um vôo de volta e me esconder do mundo. O desassossego ligou-se diretamente ao tema a que fui convidada a falar.
Eu já estava inquieta, pois saí de Porto Alegre com chuva e vento, circunstâncias climáticas que já não são percebidas com alegria ou indiferença, pois fazem parte do trauma coletivo da enchente de 2024, resultado de escolhas políticas que desrespeitam a natureza e descuidam a comunidade.
Fiquei pensando sobre a relação possível entre esses fatos, aparentemente tão distantes, já que eles não paravam de me interpelar, juntos! Todos se referem, de um modo ou de outro, ao fim do mundo.
A expressão negociação coletiva é parte do discurso (jurídico) que foi imposto por aqui com a invasão colonial e representou, para quem já habitava esta terra, o fim do mundo aldeia, como escreve Aílton Krenak.
Por aqui, não havia relação de propriedade com o território ou com os demais seres viventes. As pessoas não se consideravam corpos propriedade. Tampouco compreendiam ou conheciam a necessidade de vender trabalho por capital, para ter acesso ao alimento ou à medicina. Os rios não tinham suas margens alteradas e suas águas poluídas em nome do progresso.
Para quem teve seu mundo invadido ou foi dele retirado e trazido para cá, não havia escolha, a luta coletiva era o único modo de tentar impedir a destruição de tudo. Essa era provavelmente a mesma urgência que a geração de Cecília percebeu. Era preciso resistir ao capitalismo e ao seu autoritarismo imanente, a tudo que se impôs em nome dele.
Não era de negociação que se tratava. Basta lembrar das fugas, aquilombamentos, do movimento das ganhadeiras, na Bahia de 1857, ou da paralisação dos padeiros e tipógrafos no início do século XX. Do que ocorreu com quem de algum modo se opôs à ditadura. Sem direitos reconhecidos, não havia conversa com os donos do poder. Havia perseguição e morte. A luta de classes por aqui começa, portanto, como uma luta pela vida. Em razão dessa luta, houve a positivação de direitos sociais.
Essa realidade não se alterou em sua essência.
Ainda hoje, quando pessoas trabalhadoras fazem greve pelo reconhecimento de uma condição material menos violenta, estão lutando pela vida e são duramente atingidas pela força repressiva do Estado. Desde multas milionárias contra sindicatos, passando pela chancela da perda do emprego, pela prisão de grevistas e pela ação policial truculenta, as práticas eufemisticamente chamadas antissindicais são tão comuns, que parecem não provocar mais a indignação necessária.
A questão é que o Estado nomeia essa luta, para tentar liquidá-la. Chama de greve o movimento de resistência e de negociação a capacidade que esse movimento tem de “arrancar penosamente” a legislação trabalhista e, por consequência, impor limites à exploração.
Faz isso para neutralizar a força coletiva transformadora.
Não estranha que o faça. O que devia espantar é a tranquilidade com que se aceita essa cooptação. Chamar de negociação coletiva é eliminar o horizonte de transformação social possível.
Na semana que passou, duas pessoas morreram de frio em Porto Alegre. Não tinham casa para morar nem roupa quente para vestir. Em pleno outono, nevou na serra e a temperatura por aqui ficou insuportavelmente baixa para quem não tem como se abrigar.
Esse é o produto desse modo de vida que destrói o ambiente. Uma sociedade, na qual alimento, casa, roupa, remédio não são partilhados, dependem de dinheiro, que só será alcançado, para a maioria, por meio do trabalho.
Esse produto é a morte.
São essas pessoas, que dependem do trabalho assalariado, que se organizam em sindicato. Dizer que negociam com o capital é já usar, portanto, o discurso de dominação. Elas não agem com autonomia. Esse é outro mito reproduzido até mesmo por muitos daqueles que reconhecem a importância dos direitos trabalhistas.
Não há autonomia alguma para quem tem como opção trabalhar ou morrer de fome. Quando essas mesmas pessoas se organizam para agir coletivamente, pressionando o patrão para que pague mais, para que sugue menos, elas não se tornam magicamente autônomas.
Fosse assim, não haveria greve.
Nem pessoas morando na rua.
Nem normas coletivas piorando os contornos jurídicos da relação de trabalho.
Os direitos trabalhistas não são condições para a atuação coletiva, são o legado das pessoas que, escravizadas e livres, juntaram-se para reconhecer a opressão e lutar contra ela. Então, nem se trata de saber se o que hoje recebe o nome de negociação coletiva é chantagem ou aquisição de direitos, pois a própria pergunta revela o problema. Se há chantagem, se há perda de direitos por meio de atuação coletiva, algo está fora do lugar.
É comum ouvir, entre os diagnósticos da crise sindical, que falta adesão, falta credibilidade. Sabemos disso. Sabemos também que falta reconhecimento do caráter patriarcal e racista das relações sociais e da própria estrutura hierarquizada e rígida das representações coletivas.
Claro, pois a falsa ideia de autonomia coletiva da vontade tem como efeito uma espécie de dissociação entre o sindicato e a classe trabalhadora, como se fizesse algum sentido falar de um sem a outra: um que negocia, a outra que no mais das vezes sai perdendo.
Como convencer as pessoas que começam a se identificar coletivamente, a se reconhecerem como categoria, a formar sindicato? Essa é a outra face da mesma questão, que faz com que se insista em evidenciar que os jovens “não querem ser CLT”.
Atuar coletivamente e, a partir disso, conquistar direitos, é mover-se junto. E não é necessário estar sob a forma sindicato para isso. Está aí o breque dos apps para provar. Identificar-se em uma condição de opressão independe de pertencer formalmente a determinada categoria profissional. A luta pelo fim da escala 6 x 1 mostra isso.
As formas jurídicas servem, mas apenas quando encontram aderência na realidade e promovem o tensionamento contra a opressão. Faz tempo, porém, que ter CTPS ou pertencer a um sindicato passou a significar, para boa parte da classe trabalhadora, algo bem diverso do que o pertencimento ou a possibilidade de viver com o mínimo de decência. Isso não significa que devemos abandonar o movimento sindical ou a forma CLT. Significa reconhecer a urgência de repensarmos as práticas cotidianas que tornam o sindicato um agente de renúncia ou fazem da carteira assinada uma espécie de autorização para punir.
Eis nosso desafio: lutar pelo sindicato e pela CLT, para estender proteção social e radicalizar as possibilidades de luta coletiva passa por reconhecer o quão distanciados estão, o sindicato e a legislação (ou melhor, o que fazem dela na prática) dessa função transformadora. Não para sacrificá-los, mas para pensar modos de retomar um caminho de luta que faça sentido e para seguir disputando o discurso jurídico.
É urgente problematizar práticas que naturalizam a justa causa, a aplicação de penalidades não previstas em lei, que banalizam a despedida e a realização de horas extraordinárias. Problematizar a naturalização das metas e da remuneração por produtividade. No campo do que se convencionou chamar negociação, é preciso reconhecer a violência da cláusula de quitação geral de contrato, da sistemática renúncia a direitos alimentares. Reconhecer o quanto a tal negociação implica, na realidade, no campo individual e coletivo, um estímulo ao descumprimento de direitos sociais trabalhistas. Um reforço, portanto, da dominação do capital sobre o trabalho.
São muitas as situações em que a realidade se distancia do efeito de proteção social que é a razão de existência do direito do trabalho. Também são muitas as normas coletivas que traem profundamente sua função de melhorar a condição social das categorias organizadas. E nada disso é fruto apenas do neoliberalismo, de pessoas perversas ou de uma suposta capitulação dos dirigentes sindicais.
O capitalismo é um metabolismo fundado na concorrência. Um dos efeitos disso é o que algumas autoras têm chamado de cultura do inimigo. Encontrar a quem culpar parece ser a chave para conviver com o que nos incomoda, sem implicar-se.
Culpar a “reforma” pela crise sindical, por exemplo, parece eximir de problematizar o fato de que a maioria das alterações inseridas na CLT, pela Lei 13.467, já apareciam em súmulas e normas coletivas e foram aceitas e banalizadas nas demandas judiciais: jornada de 12h; venda do intervalo; terceirização; facilitação da despedida; banco de horas, nada disso foi criado por essa legislação. Não estou minimizando os efeitos da “reforma”. Estou apenas propondo que não sejamos atraídas pelo mito de que existem algozes, sejam eles legisladores ou ministros do STF, atuando contra um verdadeiro sistema de justiça social.
O exemplo do tema 1046 é emblemático. A possibilidade de renunciar a direitos trabalhistas é sustentada, nesse verbete, com um princípio inventado por um autor que faz parte do que muitos consideram a “melhor” doutrina trabalhista.
Quem atua na Justiça do Trabalho e no movimento sindical tem implicação e, portanto, responsabilidade. Ao tratar como negociação a capacidade de reivindicação, o que se fez foi reduzir drasticamente a potência dessa força de transformação social. Eis porque, em 2025, são inúmeras as normas coletivas abrindo mão de direitos positivados e tantas as decisões judiciais impedindo o exercício da greve.
A luta sindical começa bem antes de ser nomeada pelo Estado. A expressão negociação coletiva é, portanto, um simulacro. Um recurso retórico violento. No campo individual, produz renúncia e vedação do acesso à justiça. No campo coletivo, está alterando os limites da exploração do trabalho, de forma bastante cruel. E esses campos não se dissociam.
Então, ou bem recuperamos o sentido do movimento coletivo de resistência, radicalizando o compromisso com a proteção social que é resultado dessa luta, ou será bastante difícil convencer quem vive do trabalho, sobre a importância dos direitos trabalhistas, do movimento sindical e da Justiça do Trabalho.
O livro de Cecília me torna em mente.
Não falei dele no evento, pois o tempo era curto. Agora, que materializo o que sua escrita me fez refletir, reconheço que fiz relação com o tema da negociação coletiva, porque Cecília também participou da luta sindical, em razão da iminência do fim do mundo em que vivia. E sofreu em seu corpo o efeito do que acontece, quando o laço dos movimentos coletivos é rompido pela força bruta.
Prender, torturar e matar pessoas que se mobilizam coletivamente por mudança segue sendo uma forma bastante eficaz de destruir corpos, ideais e possibilidades de transformação social.
Como no passado, para viver hoje e ter amanhã é urgente mudar. As escravizadas entenderam isso e lutaram. A geração de Cecília também. Foram lutas travadas sem negociação, porque sempre chega o momento em que, tendo renunciado ao que foi historicamente construído no âmbito da linguagem de proteção social, nada mais há a dizer.
No momento em que o horror interdita o verbo, não serve evocar o Direito, o Estado ou a negociação. Ouvi essa frase em uma fala recente de Rita Segato, sobre o genocídio em Gaza. A experiência relatada por Cecília também mostra isso.
Hoje, lidamos com catástrofes climáticas, com o aprofundamento de discursos autoritários, xenofóbicos, nazistas, com a proliferação de governos que perseguem e matam os corpos insurgentes, racializados, periféricos, indesejados, descartáveis.
É na fenda produzida pela insistência em batalhar pela vida, que os movimentos coletivos se produzem. Historicamente, é por meio da luta coletiva que essa violência radical do capital pode ser contida.
Se ainda temos direitos trabalhistas, Justiça do Trabalho e sindicatos por aqui, é porque muitas pessoas, antes de nós, lutaram, insistiram, não aceitaram negociar. Se o discurso jurídico ainda reconhece a necessidade de democracia (o que quer que isso efetivamente signifique) e a fundamentalidade da proteção social, nada nos autoriza a pensar que tudo está garantido. Agora é a hora de reconhecer que a vida não é negociável. Antes que o verbo nos falte.
*Os artigos de opinião não necessariamente representam a posição editorial do Brasil de Fato.