Em compasso de espera, muitos processos no país inteiro seguem suspensos, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida no dia 14/4/2025, em agravo interposto por um trabalhador no ARE 1532603.
O STF reconheceu a necessidade de apreciar a “competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade”. Não há, portanto, uma antecipação da compreensão dos ministros sobre qual porção do judiciário tem competência para examinar discussões sobre alegação de fraude ao vínculo de emprego. Também não há como saber, pela descrição do tema, o que pensam acerca do ônus da prova em tais casos. Aliás, existem decisões em vários sentidos, do próprio STF, nos dois assuntos: competência e ônus da prova, quando se trata de discussão sobre fraude ao vínculo de emprego.
Pois bem, quanto à competência, bastaria ler o artigo 114 da Constituição, que desde a reforma do judiciário promovida pela EC 45, estabelece competência material para processar e julgar “ações oriundas da relação de trabalho”. Portanto, ainda que se entenda que não há vínculo de emprego em determinado caso concreto, é da Justiça do Trabalho a competência para se manifestar sobre isso. Também não parece ser tão difícil a compreensão acerca do ônus da prova, quando se discute a existência de um vínculo e há alegação de algum fato impeditivo desse direito. Basta ler o artigo 818 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Mas posso estar sendo apressada nessa análise. Talvez existam questões técnicas profundas, para as quais não estou me atentando. Sorte que temos uma corte constitucional para isso. Do contrário, seria necessário admitir que a questão é menos técnica ou jurídica, do que política, e que a suspensão não tem por finalidade permitir o amadurecimento de compreensões sobre questões complexas, mas sim constitui um recado à Justiça do Trabalho, para que altere sua jurisprudência, tornando-se ainda mais conivente com práticas fraudulentas de contratação de força de trabalho.
No caso em que a decisão foi tomada, o trabalhador recorreu justamente de uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que negou a existência do vínculo de emprego, dando razão à demandada. Logo, talvez não se trate mesmo de uma preocupação com o modo como quem atua na Justiça do Trabalho decide discussões sobre contratações sem carteira assinada. Talvez seja uma estratégia política de reforço ao discurso do empreendedor de si: um sujeito para quem o Estado nega direitos sociais.
Afinal, a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras que são contratados por empresas multinacionais que operam por meio de plataformas digitais é uma das maiores questões sociais do nosso tempo. A precarização que decorre da supressão de direitos sociais para essas pessoas gerou mobilização e arrancou dos Estados uma regulação protetiva, em vários países. Na última reunião da OIT, deliberou-se redigir recomendação e/ou convenção sobre direitos que precisam ser assegurados a uma categoria profissional que já não suporta mais a exploração sem limites. Aqui no Brasil, os e as motociclistas estão desde a pandemia dando lições sobre o exercício saudável do direito de resistência contra a opressão, com seus breques e sua organização coletiva.
Então, talvez a suspensão dos processos para a discussão do tema 1389 seja um modo de arrefecer essa discussão ou de reposicioná-la, desde uma insistência na lógica ultraliberal, para a qual direitos trabalhistas sequer deveriam existir. Mas também aqui estou no plano das especulações. E isso sequer é o mais importante de compreender. Independentemente da motivação para a suspensão dos processos, o fato é que o efeito social, político e jurídico de uma decisão como essa já se verifica na prática da prestação jurisdicional trabalhista.
A suspensão, portanto, vale por si, a despeito do resultado que tiver a discussão sobre o tema 1389. Por isso, precisamos compreender como chegamos até aqui e como reagir a esse modo de sujeitar a Justiça do Trabalho à paralisia. A reação mais comum tem sido a de identificar um inimigo e direcionar a energia a contrapô-lo. Acontece que o STF não iniciou nem é o principal agente desse processo de desmanche. Então, se é importante reconhecer a gravidade de sua função, também se faz urgente entender que a própria Justiça do Trabalho, por seus agentes, criou as condições para que o tema 1389 existisse.
A súmula 331 abriu às portas à terceirização. Foi redigida pelo próprio TST e imediatamente aceita pela advocacia trabalhista, que passou a formular pedido de responsabilidade subsidiária e referir-se à atividade-meio, conceitos inventados nesse verbete. A lei que institui a prática violenta apelidada de “banco de horas” também foi aceita, sem maiores reações. São dois exemplos da década de 1990 do século passado.
Tantos outros poderiam ser lembrados.
Direitos sociais surgiram historicamente em razão da organização coletiva e da resistência da classe trabalhadora. Constituem limites à exploração: máximo de jornada, mínimo de salário, ambiente saudável, possibilidade de descansar e de adoecer, sem perder a condição econômica para sobreviver – é disso que tratam as normas trabalhistas.
Punição, humilhação, controle não são decorrência da legislação trabalhista, mas da distorção do seu discurso e de uma prática que insiste em manter a racionalidade escravista nos ambientes de trabalho.
Eis o ponto que me parece essencial nessa conversa: não chegamos até aqui por acaso. Desde que a Constituição de 1988 reconheceu a fundamentalidade dos direitos trabalhistas, o movimento de desconstrução desses direitos vem sendo adotado por quem atua nos mais variados campos da cena jurídica.
Já vi parecer do Ministério Público do Trabalho (MPT) pela pronúncia de prescrição em sede de ação rescisória. Já instrui ação do MPT contra sindicato, contestando fundo de greve. São inúmeros os acordos extrajudiciais com cláusula de quitação geral, firmados por advogados de trabalhadores; demandas com pedidos insustentáveis e defesas alegando incompetência material. Poderia ficar páginas arrolando exemplos do movimento silencioso que abriu às portas à terceirização, à normalização da pejotização, às práticas de vedação do acesso à justiça e, portanto, ao desmanche da proteção social representada pelo Direito do Trabalho.
O mesmo discurso que permeia os argumentos para a discussão do tema 1389 são utilizados em outras situações, nas quais a alegação de que o trabalho é ilícito (porque de caráter sexual), autônomo (porque realizado dois dias na semana) ou parceiro (porque cede-se um espaço em ambiente de estética) tem por efeito negar direitos sociais a trabalhadoras e trabalhadores que vivem da força de trabalho que vendem em troca de remuneração. É o mesmo argumento, em essência, que nega a responsabilidade de quem efetivamente emprega a força de trabalho, com o artifício da terceirização.
Alterar esse caminho depende de compreender o que é essa racionalidade escravista que transforma a CTPS assinada em autorização para punir, xingar, exigir metas, assediar e despedir sem motivação. E que retira do campo da proteção trabalhista um número tão significativo de pessoas que vivem do trabalho que realizam. Depende de estudo, para que haja compreensão da importância do processo do trabalho, a fim de que seja possível livrar-se desse desejo tão intenso de aplicar regras do processo comum na Justiça do Trabalho, por exemplo.
Em outras palavras: a decisão do STF servirá para a extinção ou para o fortalecimento do Direito do Trabalho, a depender de quem lida cotidianamente com o sistema de justiça trabalhista. Uma resistência eficaz ao que efetivamente representa o tema 1389 passa por alterar de modo profundo a prática de atuação judicial. Para que não pareça um discurso distante da realidade cotidiana, vou citar alguns posicionamentos que representam resistência ao processo de desmanche, de que o tema 1389 é apenas mais uma expressão.
É possível, de imediato, rejeitar a prescrição no curso do vínculo de emprego, pela impossibilidade material de propor a demanda (sem perder o emprego), em analogia ao que estabelece o artigo 197 do Código Civil. Do mesmo modo, a prescrição intercorrente não deve ser aplicada, porque extrapola o limite máximo de restrição ao direito fundamental de ação previsto na Constituição e porque é dever do Estado realizar o direito. Já há voto do TRT4 nesse sentido.
É possível reconhecer que o artigo 7o, inciso I, da Constituição estabelece um direito fundamental à relação de emprego. Isso, junto com o respeito ao artigo 37 da Constituição, autoriza compreender ilícita qualquer forma de terceirização. Aliás, a parte final do § 2o do artigo 2o da CLT estabelece solidariedade e, portanto, a responsabilidade direta em qualquer forma de repasse de força de trabalho, permitindo, igualmente, afastar a possibilidade de terceirização ou, no mínimo, reconhecer a responsabilidade direta de quem se beneficia do trabalho.
Respeitar o limite máximo de jornada de 8h, e de 6h para turnos em revezamento, na forma da Constituição, implica considerar ilícito qualquer modo de elastecimento do horário de trabalho, especialmente aquele que transforma tempo de vida em mercadoria, estabelecendo uma relação perversa de débito e crédito. Regime de 12h de trabalho é literalmente inconstitucional. Com supressão de intervalo, torna-se uma prática que adoece, extenua, configurando inclusive o tipo do artigo 149 do Código Penal.
O direito à estabilidade segue previsto nos artigos 492 e seguintes da CLT. Por que não é mais discutido nos processos trabalhistas? Por que ninguém questiona a inconstitucionalidade da justa causa? Nem exige respeito ao dever fundamental de motivar a despedida, que está no artigo 7o, inciso I, da Constituição?
Por que se aceita que empresas compareçam às audiências judiciais com pessoas contratadas para fingir serem prepostas, eliminando o direito do reclamante a obter confissão?
Aplicar as regras sobre o dever de exibição de documentos, inclusive em relação à jornada, autoriza rejeitar a aplicação da súmula 338 do TST, porque contrária à lei.
A Constituição proíbe pena sem prévia cominação legal. Por que segue-se aplicando aquela fixada na súmula 74 do TST?
Impedir, porque ilícita, toda conciliação que envolva renúncia a crédito alimentar, fraude contra terceiros (INSS) ou quitação genérica do “extinto contrato de trabalho” não é algo extraordinário. É exercício de positivismo saudável.
Se greve é direito fundamental, como seguir aplicando penalidades aos sindicatos, sem permitir que esse direito seja exercido de acordo e a partir do interesse da coletividade de trabalhadores?
Paro por aqui. Poderia seguir.
A lista é grande, mas a ideia é tornar explícita a distância em relação à prática de um Direito do Trabalho que exerça sua função social. E, especialmente, a possibilidade que temos de alterar essa realidade. Algo que tem direta relação com a atuação da advocacia trabalhista, da magistratura e do Ministério Público.
É urgente reconstruir uma Justiça do Trabalho que talvez nunca tenha existido, que entenda sua função e a exerça sem medo. Isso independe da decisão a ser tomada pelo STF.
O tema 1389 é mais um capítulo violento de uma história que começou quando a força colonizadora nos obrigou a adotar um modo de vida irracional e adoecedor. Precisamos trabalhar em troca de salário, para viver. Em um tal cenário, ter direitos trabalhistas é o mínimo. Então, quem lida com o sistema de justiça social tem o dever de atuar para que esses direitos sejam efetivos.
Insisto nesse ponto: é preciso radicalizar, ir à raiz da razão de existência dos direitos trabalhistas, compreender sua importância e comprometer-se, nos pedidos, nas audiências, nas defesas, nas decisões, para que a Justiça do Trabalho seja levada a sério.
É isso, ou seguir lamentando a perda de algo que nunca existiu.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil de Fato.