“É que Narciso acha feio
o que não é espelho
E à mente apavora o que
ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes
quando não somos mutantes”
Gênero, eis uma palavra que assusta.
O Conselho Nacional de Justiça pode emitir resoluções sobre questões processuais, como aquela que estabelece regras para demandas que versam sobre “acordos extrajudiciais”. Pode fazer políticas públicas, campanhas sobre gestão ambiental e sustentabilidade. Mas falar sobre gênero, isso não! É o que parecem pensar as parlamentares que estão à frente de uma proposta de decreto.
O PDL 89 não é novo. Foi proposto em março de 2023. Sua verdadeira motivação consta em uma frase, quase ao final da Justificação: “a teoria de gênero consiste em um produto ideológico”. Proposto por uma mulher, agora está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), em razão de parecer favorável de outra mulher deputada.
Sempre dissemos e o Protocolo enfatiza isso: a violência de gênero não é prerrogativa de homens. É uma questão social que estrutura o modo como convivemos, criamos nossas crianças, organizamos os ambientes de trabalho, separamos e hierarquizamos os corpos. Portanto, as mulheres também não escapam de estereótipos, pensamentos e práticas que reproduzem a ideia de um mundo dividido em dois.
A etimologia da palavra gênero remete ao ato de gerar (gênesis), formar família (genos). A palavra foi apropriada pelo movimento feminista, justamente para evidenciar a necessidade de compreender o que há, além da fisiologia, para representar o que entendemos como feminino e masculino. Não foi propriamente uma escolha, a palavra já era utilizada para classificar. Problematizá-la foi um caminho necessário.
Cirurgias corretivas, punições, mortes violentas e precoces: o drama social de um mundo, no qual tantos corpos sobram e são alvo de violência (doméstica, social, institucional), é a razão disso.
A realidade impôs a necessidade de compreender porque razão pessoas transsexuais têm expectativa de vida de 32 anos no Brasil; o feminicídio é um tipo penal específico ou porque temos Lei Maria de Penha. Por quais motivos, em qualquer ambiente em que se discuta violência de gênero, todas as mulheres presentes, independentemente da idade, têm alguma história triste para contar.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero traz elementos conceituais para compreendermos essas e outras questões que geram sofrimento, dor, morte.
Butler tem um livro, cujo título é “Quem tem medo de gênero”. Ela é a única autora referida, aliás, na justificação do decreto. Por isso a paráfrase, no título deste artigo.
Segundo a deputada que subscreve a proposta, Butler “declara” não haver “realidade objetiva que fundamente a correspondência entre a identidade física do sexo feminino e o conceito de “mulher””. Foi o que ela extraiu de uma teoria profunda sobre a necessidade de pensar a fisiologia de quem nasce com vagina, pênis ou com esses dois órgãos e a obrigação de performar o que se impõe como feminino e como atributo masculino. Foi o que ela entendeu sobre uma teoria que problematiza a imposição do desejo por um corpo que não seja meu espelho e o quanto de sofrimento evitável isso gera. Foi o que ela conseguiu extrair dos tantos textos que debatem o que implica, desde a infância, habitar um corpo que é estranho, que insiste em não corresponder as imposições sociais. E ter de enfrentar a fúria de quem não sabe lidar com a multiplicidade de cores, desejos e formas que nos constituem, porque também foi violentamente ensinado a rejeitar tudo o que foge à regra da binariedade homem – mulher.
O resultado desses estudos, que tantas autoras brasileiras e latinoamericanas também fizeram e ainda fazem, é a possibilidade de conviver com a diferença, com a complexidade própria da vida humana. Isso assusta. Não apenas porque abala séculos da doutrina de dominação dos corpos, em nosso caso amplamente reforçada pela violência colonial. Assusta porque compromete todo o discurso do capital.
Esse é o ponto.
O que chamamos capitalismo funda-se nos conceitos de Estado e de Direito. O Protocolo é a expressão disso. Traz conceitos e instruções para julgamentos que reconheçam que os corpos que buscam o judiciário tem cor, sexo, idade e condição física e mental que os impede de seguirem sendo julgados desde a fantasia discursiva do sujeito universal.
Direito de família e sucessões, direito penal, civil, trabalhista, tributário: toda a ordem jurídica está fundada na ideia de família formada por um homem e por uma mulher, em que a propriedade circula a partir de regras que se direcionam especialmente ao controle e sujeição do que é lido como feminino, mas submetem a todos.
O condicionamento do nosso desejo é político.
Daí porque até bem pouco tempo atrás, filhos nascidos fora do casamento não tinham direito à herança ou a morte de uma mulher podia ser justificada pela legítima defesa da honra. Outorga marital para o trabalho ou prazos diferentes de licença para o cuidado dos filhos pequenos não são regras neutras.
O fato de que o número de mulheres e corpos feminilizados assediados (moral e sexualmente) nos ambientes de trabalho é significativamente maior é mais um exemplo dessa mesma cultura, em que o corpo é compreendido como algo apropriável e, no limite, descartável.
Em resumo, é a noção de corpo como propriedade que funda as relações sociais e sustenta o discurso que ordena a circulação da propriedade privada. Por isso, mesmo movimentos críticos a essa ordenação violenta do que podemos ou não ser e fazer com nossos corpos acabam, por vezes, lutando pelo reconhecimento da possibilidade de se sujeitar à ordem capitalista patriarcal. É o caso do reconhecimento da possibilidade de casamento entre pessoas lidas como sendo do mesmo sexo. Ou das transformações dos corpos, para que possam performar o que se espera seja reconhecido como um corpo de mulher ou de homem.
É uma estrada.
Percorrê-la é um desafio que as pessoas que se mobilizaram para que o Protocolo existisse aceitaram trilhar. Uma estrada que foi (e segue sendo) a razão para que mulheres de todos os matizes pudessem exercer funções, como a de deputada.
Reconhecer a profundidade da transformação social que pautar a questão de gênero pode provocar não é simples. Afinal, o medo que essa discussão provoca é profundo e pode ser compreendido, quando refletimos sobre o que estrutura nossa forma de convívio social, tão perversamente reguladora, tão monocromática e binária.
Então, que o PDL 89 sirva, de modo dialético, como uma boa oportunidade para percebermos o quanto ainda é importante, em 2025, falarmos sobre uma pedagogia da sexualidade, que retire os termos gênero, transsexual, não-binário, não-monogamia, de seus lugares tão aterrorizantes para quem não se permite o estudo, para quem tem medo da mudança que essa discussão pode gerar.
Poderíamos chamar de pedagogia da vida. Afinal, é disso que se trata, quando o tema é gênero. Quantas vidas diferentes existem e o que é necessário para que reconheçamos essas diferenças e consigamos respeitá-las. Mas, sobretudo, o que isso pode produzir em termos de profunda alteração na forma como vivemos juntas.
O Protocolo está disponível on line.
É um documento que está bem longe de ser subversivo, exceto se o compreendermos como uma janela de possibilidade para estudos ainda mais comprometidos com o sentido que essa palavra recebe no dicionário Oxford: “ato ou efeito de derrubar, destruir”, fazer ruir uma estrutura.
Eis o que tanto assusta: a potência transformadora que uma palavra pode assumir, quando desmistificada, discutida, considerada e acompanhada de uma crítica capaz de abalar a violenta estrutura social em que vivemos.
Quem tiver curiosidade, vale a leitura.
*Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.