É muito duro a gente ficar nessa incerteza do amanhã
Eu que sou mulher muito otimista
Mas nesse momento eu fico pensando
Será que a gente não vai ter um momento melhor
Do que estar pedindo justiça
Justiça, justiça pelo amor de Deus
Justiça
Elza Soares
O título é parte da música do Chico Buarque, que todos conhecem. A epígrafe é uma fala de Elza Soares. O tema é a inédita decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na AP2668. O dia 11 de setembro de 2025 será estudado no futuro. Pela primeira vez, uma decisão judicial ousou reconhecer a responsabilidade de generais e de um ex-presidente, por participarem de uma organização criminosa armada e tentarem promover um golpe de estado.
Na história do que chamamos Brasil – já escrevi sobre isso – foram muitos os golpes de estado. Todos eles minimizados, disfarçados por discursos de liberdade. O que todos esses golpes têm em comum é a racionalidade colonial violenta de nosso país a garantir a impunidade de quem os pratica. Foi exatamente isso que fissurou com a decisão histórica proferida pelo STF. Pela primeira vez, o sistema de justiça reconheceu a responsabilidade dos golpistas. Por ter sido apenas uma tentativa – como dizem alguns – é que a punição tornou-se possível. Tivesse sucesso a trama para matar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes, não haveria AP2668. Tivesse sucesso o intento de intervenção militar, não teríamos sequer a possibilidade de um processo judicial com garantia de contraditório e ampla defesa, que permitisse a produção das provas e o proferimento de votos que, como vimos, não foram unânimes. É interessante que, sob esse prisma, o voto peculiar do ministro Luiz Fux sublinha a lisura do procedimento, impedindo comparações esdrúxulas entre práticas de lawfare e processos como o da AP2668, no qual as regras do jogo foram e estão sendo respeitadas.
Ainda resta, porém, pensar sobre as razões pelas quais foi possível processar por esses crimes, mas não pelas escolhas e atos praticados pelo governo, durante a pandemia da covid-19. É verdade que essa condenação de algum modo alivia a sensação de impunidade de quem sofreu de perto o negacionismo criminoso que produziu tanta morte desnecessária. Mas também é irrefutável a realidade de que ela demonstra o quanto, em nossa sociedade, é mais fácil perceber a agressão a patrimônio público, do que a violência radical de políticas de morte, direcionadas especialmente contra determinados grupos da população.
Não estou propondo essa reflexão para minimizar a importância da decisão proferida. Ao contrário, esses fatos não estão dissociados, nem se opõem. Cuidar da democracia é punir tentativas de golpe de Estado, mas também é impedir que políticas de morte sejam praticadas e isso inclui garantir acesso a condições materiais de existência.
Essa é a questão central: quando o discurso da eliminação do outro ganha tamanha força, a democracia vira um simulacro, mesmo que seja valentemente defendida em decisões exemplares, como essa.
Temos eleições no próximo ano. Que haja parlamentares e possíveis candidatos à presidência já referindo que pretendem reverter a condenação do dia 11 dá a medida da gravidade do que está em jogo. Aliás, como é possível que um parlamentar defenda abertamente intervenção estrangeira para impedir o pai de ser condenado e ainda não tenha sido afastado e cassado?
A extrema direita – um termo que me parece insuficiente para representar os discursos fascistas de eliminação das diferenças – segue firme e forte em seu propósito de combater qualquer pessoa, coletivo ou ideia que pretenda um mundo diferente desse em que hoje vivemos. E esse mundo tem sido péssimo para a maioria das pessoas. O acesso a um trabalho minimamente digno, a possibilidade de coexistir com outros seres e de ter futuro são diariamente contrastadas com práticas fundadas em uma percepção egoísta e destruidora da vida.
Chego ao ponto que me interessa: o que esse momento catártico, mas ainda inicial, de resgate da memória traumática dos tantos golpes legitimados em nossa história nos ensina é a necessidade de compreender que essa decisão é um passo importante, em um longo caminho de transformação social que se faz cada vez mais urgente.
Trata-se, sobretudo, de construir uma outra linguagem democrática, em que efetivamente não existam pessoas acima das regras, tão confiantes na impunidade e na possibilidade de dispor de nossas vidas, a ponto de registrarem em mensagens, imprimirem em papéis e colocarem em marcha planos de assassinato ou golpe. Uma linguagem que efetivamente incorpore a racionalidade social contida na Constituição da República.
O vandalismo ao STF desencadeou investigações importantes e permitiu que uma decisão histórica fosse proferida, servindo de exemplo ao mundo ocidental, em um momento de crise profunda da noção e da prática de democracia. Isso não é pouco. Agora, é preciso entender que não há dissociação entre democracia e direitos sociais.
Um Estado em que regras e decisões judiciais têm por objetivo a redução das desigualdades, o bem comum, a preservação da dignidade humana não pode ter espaço para a terceirização, para a pejotização, para jornadas de 12h sem intervalo. Uma ordem econômica que se submeta realmente aos ditames da justiça social preserva a vida, inclusive durante o tempo de trabalho.
Pois bem, o mesmo STF que deu exemplo no julgamento da tentativa de golpe de Estado pautou o tema 1389, sobre a possibilidade de contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, o que implica a eliminação da totalidade dos direitos fundamentais trabalhistas para essas pessoas. E esse é apenas um exemplo. Muitos outros entendimentos que destroem a proteção social já viraram súmula, tema, tese vinculante.
Eliminar direitos trabalhistas, que não são mais do que limites à exploração da vida, por meio do trabalho obrigatório, é contribuir de modo decisivo para o reforço da racionalidade fascista. Quanto mais precarizada é a vida, quanto menos espaços de vivência digna existem, maior será a competição, porque mais pessoas ficarão à margem. Maior, consequentemente, será o estímulo ao pensamento egoísta, pelo qual – no limite – justifica-se a eliminação do outro.
Nunca mais é a frase que não cessa de surgir na minha mente.
Sei que não será assim, a história não anda em linha reta. Muitas pessoas ainda agem desde uma razão colonizada, que parece não ver problema em declarar-se patriota e pretender que outro país determine nossos rumos, sob o uso de força física ou coação econômica. Há sem dúvida um déficit (ou uma ausência concreta) de democracia em nossas práticas republicanas, a começar pelo modo como o Estado lida com os direitos sociais. Para que haja a mudança, de que a condenação de 11 de setembro parece ser um bom auspício, é importante pensar profundamente sobre a necessidade de questionar esse modo de vida em sociedade, no qual os bens valem mais do que as pessoas. E isso sem dúvida passa pelo respeito aos direitos fundamentais de quem vive do trabalho.
Parafraseando Elza Soares, também eu sou uma mulher muito otimista, mas neste momento fico pensando: será que essa justiça também virá com a mesma força transformadora, quando o assunto for proteção social?
Se amanhã vai ser mesmo outro dia, depende inclusive do que o STF fará com temas como o 1389.