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Engenheiro especializado em Planejamento Energético e Ambiental.

Onde está a capital do saneamento?

Porto Alegre já foi referência nacional e até internacional em saneamento básico.

Porto Alegre já foi referência nacional e até internacional em saneamento básico.

No final da década de 1990 o abastecimento de água estava universalizado. A coleta de esgotos e o seu tratamento, juntamente com a recuperação de mananciais, em especial o Gravataí e o Guaíba, possuíam programas em andamento. A seguir neste ritmo, hoje certamente a exigência do Marco Legal do Saneamento  de 99% de abastecimento de água e de 90% da coleta e tratamento de esgotos, estaria cumprida.

A cidade estava limpa, inclusive com todos os meio-fios pintados. Este aspecto fazia com que os cidadãos gostassem da sua cidade e ajudassem a mantê-la limpa. A coleta seletiva do lixo alcançava índices semelhantes aos dos países do Primeiro Mundo.

O Sistema de Proteção Contra Cheias possuía operação e manutenção adequadas e permanentes. A drenagem urbana contava com obras e ações, incluindo a recuperação de arroios (córregos), como nunca antes.

Porto Alegre era a única capital brasileira que realizava os serviços de saneamento diretamente, incluindo uma estrutura própria para drenagem e proteção contra inundações diretamente ligada ao Prefeito, o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP). Todas as atividades eram realizadas de maneira sustentável. Havia programa permanente de Educação Ambiental. Era prioridade no Orçamento Participativo.

Fonte: IA – Sede DMAE  e Estação de Tratamento Moinhos de Vento.

Assim, o Município valorizava o saneamento e propiciava a merecida qualidade de vida à sua população.

O saneamento garantia qualidade de vida

Hoje temos falta de água praticamente o ano todo em alguma região e em várias regiões durante o verão. A coleta e tratamento de esgotos está praticamente estagnada. A coleta de lixos vem deficiente há anos, o que aumenta a geração de gases de efeito estufa. A manutenção do Sistema de Proteção contra Cheias de vários componentes essenciais como as comportas externas e comportas junto às Casas de Bombas deixou de ser realizada desde 2020, diques deteriorados sem recomposição há anos. O sistema de drenagem urbana com manutenção completamente insuficiente. O resultado trágico foi a Cidade inundada como nunca antes vivido, pior do que em 1941.

Há recuperações em andamento, no entanto, várias obras em realização são completamente inadequadas.

Como e porque chegamos a esta situação? Tem solução adequada?

Antes vamos relembrar alguns aspectos relevantes sobre o saneamento básico, constituído pelo abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgotos, coleta e tratamento de lixos e drenagem urbana e proteção contra cheias, conforme determina a Constituição Federal e a respectiva legislação.

Todas estas atribuições são dos municípios, cuja ampla maioria não possui estrutura e nem finanças para realizá-las adequadamente, nem mesmo fiscalizá-las quando concedidas. Quantos municípios realizam obras de drenagem urbana e proteção contra cheias e realizam adequadamente a sua manutenção?

O Saneamento básico, tão desvalorizado, é a política pública capaz  de garantir uma cidade segura contra as intempéries climáticas e ainda propiciar saúde e dar condições para a educação. As suas atividades são intensivas na geração de renda e postos de trabalho. É um investimento como nenhum outro; cada real investido em saneamento, poupa três reais em saúde.

Saneamento: saúde, educação, proteção contra intempéries, renda, trabalho

A solução para recuperar o imenso déficit em praticamente todos os municípios é a privatização, como tem sido alardeado? Registre-se que este déficit existe em decorrência da pouca valorização do saneamento, bem como do sucateamento proposital das suas estruturas (empresas, autarquias, secretarias) e da gestão.

O modelo de privatização está diretamente vinculado  à orientação geral do capitalismo.

Após duas guerras mundiais e a crise de 1929, o Acordo de Bretton Woods (1944) estabeleceu um conjunto de orientações para a reconstrução do mundo, especialmente os países do chamado primeiro mundo, devendo os empreendedores aplicar seus recursos no chamado investimento produtivo, tendo o apoio do estado, principalmente com os serviços fundamentais, entre eles o saneamento. Também determinou a criação de estruturas de apoio como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Bird (Banco Mundial)

Privatizar ou não segue orientação geral do capitalismo

E assim procedeu-se no mundo e no Brasil; não por acaso, a ultradireita ditadura militar não realizou nenhuma privatização, ao contrário, criou e fortaleceu estruturas estatais.

Nos anos 80, o capitalismo mudou de orientação para o neoliberalismo. Para ter mais ganhos era necessário privilegiar o investimento especulativo; vender tudo quanto fosse possível e usufruir os resultados. Praticamente uma auto-destruição, um completo retrocesso para o desenvolvimento.

Para o estado realizar as vendas (em vários casos, verdadeiras doações)  de seus serviços essenciais, está definida uma receita fundamental, utilizada em todas as privatizações. Sucatear completamente os serviços existentes, torná-los ainda mais insuficientes e ineficientes. Quando a insatisfação junto à população está generalizada, oferecer a alternativa milagrosa: a privatização!

O neoliberalismo é uma auto-destruição, um retrocesso ao desenvolvimento

No caso do saneamento, a privatização iniciou na França, tendo sido seu modelo utilizado em várias partes do mundo. O erro foi reconhecido e hoje há um forte processo de reestatização, especialmente na França, EUA, Reino Unido, Alemanha e muitos outros países. Há quem diga que no Brasil as fases do capitalismo chegam com atraso e saem atrasadas. Aqui temos a confirmação.

Os países do Primeiro Mundo já retrocederam

Quais dos serviços privatizados no RS possuem bom atendimento, universalização  em andamento e tarifas acessíveis?

A quais empresários interessa receber serviços ruins e caros? Na prática, os defensores da privatização dos serviços essenciais o fazem exclusivamente por razões ideológicas.

Os defensores ideológicos justificam os serviços ruins como falta de fiscalização. Óbvio que a fiscalização é um aspecto fundamental, mas especialmente em relação ao saneamento há que se verificar o seguinte:

Para que todos os serviços citados inicialmente sejam realizados é necessário investir outros recursos além das tarifas, especialmente em relação à coleta e tratamento dos lixos e à drenagem urbana e proteção  contra inundações.

Em relação ao abastecimento de água e coleta e tratamento de esgotos, os municípios  maiores conseguem atendê-los satisfatoriamente com a cobrança da tarifa, porém os menores não.

A  privatização nos serviços essenciais é ideológica, não interessa às empresas

Indiscutivelmente o setor precisa de uma estruturação melhor. Faz um ano que a União destinou R$ 6,5 bilhões principalmente para obras de drenagem urbana e proteção contra cheias. A maioria sequer tem projeto executivo e não há obra andando.

Os municípios precisam ter responsáveis, seja para realizar ou fiscalizar os serviços concedidos. Estado e União precisam participar.

O Estado precisa recriar a Metroplan (órgão metropolitano) e dar condições de funcionamento aos 24 Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas.

Por sua vez, seria importante a União recriar uma estrutura para as obras estruturantes do saneamento, algo como um DNOS atualizado.

O setor precisa ser valorizado e melhor estruturado, senão não avança

Voltamos ao caso de Porto Alegre. Em 1973 uma Comissão Especial das Águas, analisando a situação de Porto Alegre (mais de 40% da área urbanizada alagável e inundável, grande sistema de proteção a ser mantido, 20 arroios a serem recuperados), decidiu pela criação do DEP. Após amplo sucateamento do órgão, o mesmo foi extinto em 2017, um retrocesso de 44 anos!

Antes, durante e depois da inundação de maio de 2024 está mais do que provada a necessidade do DEP. Na Câmara Municipal de Porto Alegre há um Projeto de Lei que cria a “Secretaria de Drenagem e Estruturas de Proteção”, recriando a DEP com mais poderes na sua atuação e no licenciamentos e maior integração com a Defesa Civil e outras estruturas públicas e privadas, como a Cidade precisa.

Para o Dmae, a proposta do Prefeito é privatizá-lo através de uma concessão à iniciativa privada. Insiste no Fake de não tratar-se de privatização porque não repassaria a propriedade.

A concessão é privada se passada à uma empresa privada e é pública se destinada à uma estrutura pública. A propriedade não é muito relevante; o importante é que os serviços sejam universalizados, tenham boa qualidade e tarifa acessível.

O Prefeito alega que o Dmae não poderá cumprir as metas do Marco Legal do Saneamento. Ora, se uma autarquia pública, que pode e deve aplicar toda a arrecadação nos serviços, não for capaz de consegui-lo, acaso uma empresa privada, que necessita acrescentar lucros para a sua própria sobrevivência, conseguirá?

A solução é destinar ao Dmae uma concessão pública, com a devida reestruturação e finanças.

O que o Dmae precisa, solução que pode ser aplicada em qualquer município, é atender o Art. 175 da Constituição Federal (CF) e atendendo os requisitos deste Artigo, realizar uma concessão a uma entidade pública, e no Contrato de Concessão estabelecer as metas para a universalização e qualidade dos serviços e demais aspectos relevantes a serem obedecidos.

Está inscrito na Câmara Municipal de Porto Alegre um Projeto Substitutivo à proposta do Prefeito, atendendo o Art 75 da CF, que reforçará o debate em andamento numa CPI, plebiscito popular e Audiências Públicas. Se o PL Substitutivo for aprovado, garantirá água, esgoto tratado, e muita qualidade de vida aos portoalegrenses.

*Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.

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