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Quem é o gaúcho?

A Revolução Farroupilha foi a maior guerra civil-militar brasileira a favor da República

*Com participação do Historiador Luiz Cláudio Knierim.

Em 20 de setembro o Rio Grande do Sul comemora o Dia do Gaúcho (Lei Estadual 9405/95), data do início da Revolução Farroupilha.

Quem é o gaúcho? E a Revolução Farroupilha foi apenas a “Guerra do Charque”, realizada pelos estancieiros do sul do Brasil? Foi realmente uma guerra dos “gaúchos contra os brasileiros”? E o seu término foi mesmo uma derrota para o Império e agora nós comemoramos esta derrota?

Vamos iniciar por “quem é o gaúcho”” numa retrospectiva histórica feita em pesquisas pelos historiadores Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes.

“Até a metade do século 19, o termo gaúcho era usado de forma pejorativa, sendo dirigido a os aventureiros, ladrões de gado e malfeitores que viviam nos campos.

Resultado da miscigenação entre os indígenas minuanos, charruas, guaranis, o espanhol e o português.

No início o gaúcho era “aventureiro, ladrão de gado e malfeitor”

O gaúcho, por viver no campo adquiriu habilidades de cavaleiro, manejador do laço e da boleadeira, aspectos que perfazem a tradição gaúcha.

O primeiro registro de gaúcho surgiu em Santa Fé, atual Argentina, em 1617, quando moços perdidos, vestidos ao estilo dos índios charruas, com botas de garrão de potro, xiripá e poncho, assaltavam as estâncias de gado.

Cartas jesuítas de 1686 falam nos vagos ou vagabundos, pilhando estâncias missioneiras.

Em 1820, Saint-Hilaire estabeleceu as diferenças entre o campeiro, que trabalhava nas estâncias, e o gaúcho, pilhador, ladrão que não entendia o significado de pátria.

Foi dos indígenas que o gaúcho herdou o chimarrão, da cultura guarani, que tinha na erva-mate uma planta sagrada que estes plantavam junto aos jesuítas, quando estes foram arregimentados para as reduções, missões, jesuíticas.

Já o andar a cavalo, xiripá, churrasco de espeto cravado ao chão e a bravura vem dos charruas que habitavam os campos que hoje são a metade sul do Rio Grande do Sul, o Uruguai e o norte da Argentina.

Até o final do século 18, o território do atual Rio Grande do Sul era posse da coroa espanhola.

No sul do Brasil, as atividades econômicas e culturais ligadas ao pastoreio e ao cultivo da erva mate se assemelhavam às presentes na Argentina, Paraguai e Uruguai.

A região integrava o Vice-Reino do Prata.

Da metade do século 19 para o início do século 20 com a introdução do alambrado para o cercamento e efetiva privatização dos campos, os gaúchos e/ou gaudérios como grupo social minoritário vai desaparecendo e a literatura promove um processo de transfiguração, transformando aquele gaúcho excluído e pária social num gaúcho cheio de virtudes morais, de coragem e bravura militar, etc, como ocorre no romance “O Gaúcho” de José de Alencar e outros que o sucedem

A partir disso, o reconhecimento de sua habilidade campeira e de sua bravura na guerra fizeram com que o termo gaúcho perdesse a conotação pejorativa.

Ao final foi reconhecido como digno, bravo, destemido e patriota.

Após a Revolução Farroupilha, o gaúcho passou a ser considerado sinônimo de homem digno, bravo, destemido e patriota.

O modo de falar do Rio Grande do Sul e algumas partes de Santa Catarina e Paraná, especialmente o Oeste destes estados, a exemplo do de outras partes do Brasil, possui expressões próprias, diferenciadas da linguagem brasileira padrão.

Muitas destas expressões são compartilhadas pelos países vizinhos da bacia do Rio da Prata, Argentina e Uruguai.

É grande a influência do castelhano no sotaque e no léxico gaúchos. Convencionou-se o modo de falar do gaúcho de dialeto gaúcho ou dialeto guasca na sua nomenclatura tradicional. Muito do falar hodierno do gaúcho deriva de uma antiga língua crioula entre o castelhano e português com influência guarani, charrua e até algumas palavras em língua quexua.

O gaúcho é definido pela literatura como um indivíduo altivo, irreverente e guerreiro. As suas raízes somaram-se às culturas negras, alemã e italiana e de outros tantos povos que vieram construir no Rio Grande do Sul uma vida melhor”.

A Revolução Farroupilha foi a maior guerra civil-militar brasileira a favor da República

Tela de José Wasth Rodrigues (1937). Original na Pinacoteca Municipal de São Paulo

O peão de estância e o gaúcho foram os soldados da Revolução Farroupilha. O gaúcho entrou ainda sofrendo os preconceitos de aventureiro e malfeitor. Concluiu a guerra como digno, bravo, destemido, altivo, irreverente e patriota. Com certeza, este é um dos maiores legados deixados pela guerra ao povo riograndense.

Durante mais de três séculos o cone sul da América do Sul foi disputa das coroas portuguesa e espanhola, havendo mudança do território a cada período. Assim a guerra não era novidade na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul.

A Revolução Farroupilha foi a maior guerra civil-militar do Brasil, tendo os farrapos, com seus parcos recursos de infantaria e cavalaria, conseguido atacar e resistir durante 10 anos, de 1835 a 1845. Não há registro de dados exatos, mas estima-se a ocorrência de mais de 50 combates, com a morte de 3270 pessoas, a maioria de farrapos. A Província, na época, possuía entre 150 e 200 mil habitantes. O maior contingente de farroupilhas em armas nunca ultrapassou 5 mil, enquanto o Barão de Caxias chegou a ter 15 mil soldados à disposição.

A Revolução Farroupilha foi inspirada nos movimentos liberais antimonarquistas europeus, especialmente França, Bélgica e Polônia. Estes movimentos também ocorreram nas Américas, com destaque para o Brasil, especialmente na Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Na Europa, nem todos eram a favor da República. Após a proclamação da Independência do Brasil, os liberais dividiram-se entre os moderados, que fizeram aliança com a Monarquia e os exaltados, que adotando o lema francês “Liberdade, Igualdade e Humanidade”, passaram a lutar pela República.

Em 1932 foi fundado em Porto Alegre, o Partido Farroupilha, sob liderança de militares como o Tenente Alpoim e o Major Lima e Silva, que foi constituindo um núcleo dissidente do Império até chegar à Revolução, em 1835.

A liderança da Revolução Farroupilha e da Presidência da República Riograndense foi ocupada por um graduado militar do exército imperial.

A principal liderança da Revolução foi um graduado militar do exército imperial, nomeado em 1834 como Comandante Superior da Guarda Nacional na Província de São Pedro do RS (posteriormente destituído deste cargo): Bento Gonçalves da Silva, também exímio articulador político e fazendeiro. Muitas outras lideranças destacaram-se, todas republicanas, nem todas separatistas, como foi o caso de Vicente da Fontoura.

Importante destacar também a participação dos cariocas João Manuel e Mariano de Matos, dos mineiros Domingos José de Almeida e Mariano Ribeiro, dos italianos Rosseti, Zambecari e Garibaldi, do uruguaio José Ruedas e do norteamericano John Grings.

O próprio hino riograndense que até hoje cantamos, tem melodia do Maestro Joaquim José Medanha, mineiro capturado pelos farroupilhas.

As lideranças eram do RS, da Bahia, RJ, MG, Itália, Uruguai e EUA

A principal motivação econômica eram as altas taxas aplicadas pelo Império sobre o charque gaúcho e baixas taxas alfandegárias sobre o charque estrangeiro, vindo principalmente do Uruguai e Argentina. Também havia grande descontentamento com os presidentes nomeados pelo Império para a Província de São Pedro.

As pessoas negras, organizados no corpo de combatentes Lanceiros Negros foram a “tropa de choque” do exército farroupilha, sendo decisivos em inúmeras batalhas. Também lutaram pelo outro lado, integrando o Exército do Império.

Negros e mulheres foram essenciais

As mulheres, muito pouco visibilizadas, cumpriram funções essenciais e multifacetadas, cuidando das propriedades, mantendo e sustentando as famílias, apoiando diretamente os combatentes como vivandeiras e serviços de enfermagem e cozinha, além de importantes informações obtidas como espiãs. (Vide “A casa das 7 mulheres” de Letícia Wierzchowski)

O combate direto de uma mulher foi desempenhado por Anita Garibaldi, o símbolo da bravura feminina na Revolução.

Tudo foi bem articulado e em 20 de setembro de 1835 todas as principais cidades da Província foram atacadas, destacando-se a Tomada de Porto Alegre, liderada por Bento Gonçalves. Os imperiais resistiram mais de mil dias e retomaram Porto Alegre. Em 1841, D. Pedro II concedeu à Cidade o título de “mui leal e valorosa”, que consta da bandeira de Porto Alegre até hoje.

Porto Alegre, Seival, Fanfa, Barro Vermelho, Laguna e Porongos: principais batalhas

Na Batalha do Seival, em 10 de setembro de 1836, o comandante Antonio Souza Neto, contando com a decisiva participação dos Lanceiros Negros, derrotou os imperiais, declarando a criação da República Riograndense, tendo com Presidente Bento Gonçalves e capitais as Cidades de Piratini, Caçapava do Sul e Alegrete.

Em 2 e 3 de outubro ocorreu a Batalha da Ilha do Fanfa, em Triunfo, onde Bento Gonçalves e outras lideranças foram presas e levadas ao Rio de Janeiro. De lá foi transferido para Salvador, onde conseguiu fugir da prisão, contando com o apoio de militantes republicanos baianos, especialmente o médico Sabino da Rocha, o líder da Revolução baiana Sabinada. Bento Gonçalves permaneceu um período na Bahia auxiliando a Revolução da República Bahiense. Esta, após derrotada em 1838, fez com suas principais lideranças e outros dissidentes, num total de 150, viessem lutar ao lado dos farroupilhas. Assim como vieram do Pará 80 ex-integrantes da Cabanagem.

O exército farroupilha obteve uma grande vitória com  a Batalha do Barro Vermelho, em Rio Pardo.

No entanto, além de ter perdido Porto Alegre, os farroupilhas nunca conseguiram dominar Pelotas e Rio Grande.

Sem acesso ao mar, Garibaldi, numa epopéia, construiu dois “lanchões”, Seival e Farroupilha, transportados em grandes carretas puxadas por juntas de bois até o mar. Rumou para Laguna, onde conheceu Anita e em 24 de julho de 1839 fundou a República Juliana, braço catarinense da República Riograndense. Esta durou apenas 4 meses, sendo Laguna retomada pelos imperiais.

Em 1943, Bento Gonçalves, desgostoso com as divergências internas do movimento e com problemas de saúde, passou a Presidência para Gomes Jardim.

Ao final de 1944, não mais resistindo a grande superioridade militar dos imperiais, os farroupilhas começaram a negociar um acordo, com o representante imperial o Barão de Caxias.

Em novembro de 1844, os Lanceiros Negros estavam acampados, sob o comando de David Canabarro, na localidade de Porongos, já desarmados e distantes de outras tropas farroupilhas, foram atacados pelos imperiais e literalmente trucidados, ocorrendo a morte de 110 pessoas e 333 prisões, incluindo 35 oficiais. Esta foi uma das últimas batalha da Revolução Farroupilha.

Era hora de concluir um acordo. Bento Gonçalves ainda desejava obter uma “República Independente” integrada ao Brasil, substituindo a Província.

O Acordo de Ponche Verde, localidade hoje parte do município de Dom Pedrito, fronteira com o Uruguai, foi assinado entre David Canabarro e o Barão de Caxias, a ser referendado por Dom Pedro II, tendo, entre outras as seguintes importantes cláusulas:

– Fim da Revolução Farroupilha;

– Anistia a todos os republicanos com garantia “pleno e inteiro esquecimento de todos os atos praticados pelos republicanos durante a luta”;

– Integração da cavalaria farroupilha ao exército brasileiro com as mesmas patentes.

– Integração ao exército imperial dos oficiais que assim o desejassem, mantendo suas patentes: os soldados ficariam dispensados do recrutamento; Destaca-se a integração do negro carioca General José Mariano de Mattos;

– Libertação dos escravos integrantes do exército republicano;

– A Administração local (indicação do Presidente da Província) transferida aos republicanos;

– Garantia do pagamento da dívida pública e garantia da segurança e propriedades individuais;

– Resolução definitiva da linha divisória com o Uruguai.

– Aumento das taxas de importação do charque.

O Império não cumpriu: (i) a libertação de todos os escravos; a nomeação do Presidente da Província pelos republicanos e os pagamentos aos líderes republicanos.

O Acordo, não fosse a inaceitável Batalha dos Porongos e os vetos do Imperador, seria bastante aceitável.

A grande vitória institucional veio 44 anos depois com a Proclamação da República.

O legado fundamental são os valores da dignidade, bravura, resistência e altivez integradas ao nosso povo e sustentáculo da cultura e modo de viver dos(a) gaúchos(as).

*Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil do Fato.

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