O cantor e compositor BNegão apresenta às 21h desta sexta-feira (23), no Sesc Pinheiros, em São Paulo, o show de seu primeiro álbum solo, Metamorfoses, Riddims e Afins. Conhecido por seu trabalho à frente do Planet Hemp e dos Seletores de Frequência, o artista define o novo disco como uma fusão de ritmos da música brasileira, com sonoridades do Sul Global.
“A minha onda é misturar esses graves, a batida eletrônica com a música brasileira e a música do Sul Global”, afirmou em entrevista ao podcast Conversa Bem Viver, do Brasil de Fato. “Esse disco tem esse conceito geral, que eu acho fundamental, uma abordagem geopolítica que eu acredito muito”, explica.
Segundo BNegão, o álbum propõe uma jornada musical que começa na Amazônia, passa por regiões da Colômbia, chega à Bahia com o samba-reggae e incorpora elementos jamaicanos e colombianos. “As alquimias sonoras vão acontecendo. Tem tudo a ver com a música brasileira moderna, que junta passado, presente e futuro com influências de outros lugares.”
“Sempre pensei a descolonização através da música. Antes, isso estava só nas minhas letras. Passei a sentir necessidade de expressar isso também na sonoridade”, acrescenta. “O disco é uma transição musical brutal, que aponta o caminho que pretendo seguir nos próximos trabalhos”, anuncia.
O artista também destaca a influência de suas vivências como DJ. “Basicamente não toco música americana. A única coisa em inglês que toco é jamaicana, porque foi colonizada pela Inglaterra”, diz.
Missão dançante
A relação entre dança e resistência também marca o novo trabalho. “É uma missão dançante”, caracteriza. “O álbum fala sobre muita coisa: violência policial, o Brasil, o sistema financeiro, política… Tudo isso de forma profunda e dançante”, resume.
BNegão lembrou que sua entrada no hip-hop se deu pela dança. “Dança serve para comemorar, preparar para a guerra, celebrar a vitória, acolher. Faz parte da vida”, defende. “Se não puder dançar, não é a minha revolução”, afirma.
Na entrevista, o artista também fala da importância de Dorival Caymmi, que caracteriza como “o orixá da música brasileira”, na sua trajetória e reflete sobre o legado político de Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, a quem reverencia como um dos grandes líderes humanistas da América Latina.
Serviço
BNegão: Show do álbum Metamorfoses, Riddims e Afins
- Sesc Pinheiros (Teatro Paulo Autran) – São Paulo (SP)
- Sexta-feira, 23 de maio
- 21h
- Ingressos neste link
Leia a entrevista na íntegra:
BNegão chega a São Paulo com o primeiro álbum solo, Metamorfose, Riddims e Afins. Como foi essa composição?
Quando fiz o Enxugando Gelo, chamei a galera para participar do que seria o meu primeiro disco solo. Ele começou a ser gravado em 2001 e foi lançado em 2003. Quando terminei a gravação, percebi que não era um disco solo, era uma banda. Quase todos participaram de várias faixas e compuseram junto. Então, não tinha como seguir sozinho.
Juntei todo mundo e falei: “A partir de agora, somos os Seletores de Frequência”. Dei o nome e viramos uma banda, comigo liderando, mas com tudo que caracteriza uma banda de verdade. A partir desse disco, tudo era discutido e votado, todos ganhavam igualmente, as decisões eram por maioria. Fizemos três discos, viajamos o mundo inteiro. É um trabalho do qual me orgulho muito.
A partir de certo momento, por volta de 2014, eu senti vontade de fazer outra coisa. Queria ir para o lado da eletrônica, usar elementos eletrônicos para compor, que é uma das minhas bases. Nunca tive muita chance de explorar isso porque faço parte da geração que inventou o rap com banda no Brasil. Literalmente não existia rap com banda aqui. No início, fomos marginalizados dentro do próprio movimento. Depois, a galera aceitou, e não só aceitou, como também formou bandas.
Por termos sido vanguarda, fomos apedrejados de leve. Mesmo assim, seguimos em frente. E embora nos shows já usássemos algumas bases eletrônicas, o rap originalmente tem o DJ como base, e aí vem o grave, a batida. Nunca tive chance de trabalhar com isso de forma contínua. Aí falei: “Já passou da hora”.
A minha onda é misturar esses graves, a batida eletrônica com a música brasileira e a música do Sul Global. O disco tem esse conceito, que considero fundamental, tem uma abordagem geopolítica que acredito muito: o Sul Global. O disco representa isso de forma bruta e explícita. Ele começa na região amazônica, passa pelo Acre, entra na floresta colombiana, vai para Salvador com o samba reggae, e segue. As alquimias sonoras vão acontecendo. Tem tudo a ver com a música brasileira moderna, que junta passado, presente e futuro com influências de outros lugares: música jamaicana, colombiana, e por aí vai.
Fico feliz por ter feito esse trabalho. Ele só é solo porque saiu de uma democracia (a banda) para uma autocracia. Entrei numa lógica do Partido Comunista chinês: “Vai ser assim”, e foi. Há sons que são muito específicos dentro da minha cabeça e coração. Nem fico frustrado se a galera não compra a ideia. Para esse sistema que estou propondo, de inventar músicas diferentes, precisa ser assim. Se não for, não acontece.
Estou feliz de ter conseguido fazer isso. O disco é uma transição musical brutal, que aponta o caminho que pretendo seguir nos próximos trabalhos.
Embora o Planet Hemp sempre tenha dialogado com a realidade brasileira, é inegável que muitas das batidas vêm dos Estados Unidos. Isso é clássico do rap e do hip hop. Você sente que sua trajetória passa por esse entendimento de que seu trabalho precisa dialogar com referências nacionais?
Isso já domina minha caminhada pessoal há uns 20 anos. Nos últimos 15, posso dizer que de forma muito intensa. Este disco tem muita influência das minhas discotecagens. Basicamente não toco música americana. A única coisa em inglês que toco é jamaicana, porque foi colonizada pela Inglaterra.
Faço festas grandes e pequenas, toquei no Al Janiah, por exemplo, numa data que marcou os mais de 70 anos da Nakba. Palestina Livre sempre. Eu sou 100% isso.
Sempre pensei a descolonização através da música. Antes, isso estava só nas minhas letras. Passei a sentir necessidade de expressar isso também na sonoridade. Foi um dos principais motivos para fazer o disco solo e não com os Seletores. Tinha duas coisas das quais sentia uma necessidade vital, como respirar: uma era a eletrônica, esses graves que fazem parte da minha formação, e a outra era aprofundar mais a conexão com a música brasileira em sua radicalidade.
Os Seletores têm elementos disso também, com funk dos anos 70, rap e reggae. Mas eu queria fazer arrocha carioca, pagodão, samba misturado com batida de curimba. Queria experimentar outras coisas. Por isso digo que esse disco aponta para caminhos diversos que vou seguir.
Participo dessa cena também como ouvinte e divulgador. Muita gente me manda discos antes de lançar para eu tocar. Acompanho essa cena desde o início e sou, talvez, quem mais toca esse tipo de som no Brasil. Infelizmente, essa música não está nas rádios nacionais, que deveriam estar cheias disso. São sons que movem multidões e ainda são invisibilizados porque não participam do sistema de jabá, entre outras coisas.
Essa é uma missão dançante. Meu disco mais dançante até hoje. E ele fala sobre muita coisa: violência policial, o Brasil, o sistema financeiro, política… Tudo isso de forma profunda e dançante. Minha missão era essa: falar do que é necessário, de forma dura, mas com um disco palatável, sonoramente falando. Na minha visão, ele tem um quê de pop, no melhor sentido da palavra.
Sobre esse espírito dançante, falamos muito do direito à diversão: amar, curtir e dançar também são atos revolucionários. Essa foi uma concepção que você amadureceu com o tempo?
Na verdade, eu sempre tive isso. Como sou o cara da voz, entrei nas paradas pela voz, mas também sempre compus algumas músicas. Nos Seletores, fiz bastante coisa, como Funk até o Caroço e My Base.
Sempre gostei muito de dançar. Minha entrada no hip hop foi pela dança, pelo break, como a maioria da galera. Mano Brown foi assim, Taíde também, Chico Science e Jorge do Peixe eram uma dupla de break boys. Isso, para mim, é um fundamento. É a herança da diáspora africana.
A dança serve para comemorar, para preparar para a guerra, para celebrar a vitória, para acolher. Faz parte da vida. Mexer o corpo faz bem. Quando penso em discotecagem e em shows, penso em fortalecimento físico, mental e espiritual. Pela dança, palavras, melodias, frequências sonoras. Eu sou da galera que acredita que, se não puder dançar, não é a minha revolução.
Você também está com um show paralelo em que canta músicas de Dorival Caymmi, especialmente do álbum Canções Praieiras. O quanto ele influencia esse seu novo trabalho?
Só de falar já arrepia. A parada com Dorival Caymmi é algo à parte. Em nenhum trabalho que fiz até hoje eu coloquei essa influência. Mas é o que mais ouço desde que escutei Caymmi e Seu Violão pela primeira vez. Depois veio Canções Praieiras, basicamente o mesmo repertório com algumas mudanças. Esse disco virou o da minha vida. Mudou tudo: minha percepção musical, meu caminho.
Na década de 80, era clássico nas entrevistas perguntar: “Se você só pudesse levar um disco para uma ilha deserta, qual seria?”. Para mim, seria Caymmi e Seu Violão. Claro, teria que levar a vitrola também, senão não adianta. Mas só de olhar o disco, tem uma luz ali.
Nunca tinha colocado isso para fora. Se eu não tivesse feito esse show, ninguém saberia. Não é algo que se percebe em uma música minha, como se percebe o rock, o heavy metal. Era uma coisa só minha, que carrego desde a adolescência, quando ouvi o disco pela primeira vez.
Eu queria muito fazer esse show, mas não tinha coragem. Fiquei uns 15 anos enrolando. Só aconteceu porque algo muito louco rolou. Falei com o Maurinho, de Recife, que cuida dos meus shows, para não contar a ninguém. Só falei com ele e com uma amiga com quem sempre divido essas coisas mais íntimas. Disse: “Um dia quero fazer um show cantando Canções Praieiras. Não sei se consigo, mas quero muito. Sinto que é importante”. Sempre cantei essas músicas no banheiro. Mas uma coisa é cantar no banheiro, outra é cantar para o público.
O Maurinho foi a uma reunião no Sesc Pompeia. Nenhum show estava sendo aprovado. Quando a reunião estava acabando, ele disse: “Tem mais uma coisa”. E contou do show. O Devanilson, que era do Sesc, e já está com os ancestrais, veio falar comigo um tempo depois: “BNegão, fiquei sabendo do seu show cantando Caymmi”. Eu: “Não acredito! Quem te contou isso?”. Ele respondeu: “Vou marcar”.
Eu pedi para não marcar, que nem tinha o show ainda. Mas ele marcou. Dois dias. E o show estreou assim. É como aprender a nadar: você não quer pular no mar, aí alguém te empurra, e você aprende. Foi um sucesso. Desde então, quase sempre com ingressos esgotados.
Tenho essa loucura: cerca de 80% da minha voz está dentro da tessitura vocal do Caymmi. Sai mais natural, apesar de eu fazer um esforço enorme para atingir aquele nível. É o show mais difícil da minha vida. Voz e violão, você não pode errar. Não tem como se esconder atrás de bateria ou guitarra. Se a voz falha, não tem solo para tapar. É você e o violão.
É algo muito específico. Até a afinação. Demoramos um ano para entender que era isso. Quando testamos a afinação original do Caymmi, tudo se encaixou. Só funciona nesse “portal” que se abre com aquelas notas. É outra escala, completamente diferente. É a prova de que Caymmi não era normal. Para mim, ele é como um orixá da música. O fundamento da música brasileira.
Nos despedimos recentemente de Pepe Mujica. Entre tantas ações revolucionárias, ele legalizou a maconha no Uruguai. Era uma batalha do Planet Hemp que se materializou em um território próximo ao Brasil. Como foi essa despedida e o que você sentiu quando a lei foi aprovada?
Foi uma coisa linda. Pude ir até lá para ver e sentir de perto. Foi uma emoção muito grande. Ao mesmo tempo, é doloroso e ridículo pensar que estamos falando de uma planta. Pessoas são presas, mortas, perdem anos da vida ou a própria vida por causa disso. E até hoje seguimos nessa.
No Uruguai foi mais fácil porque é um país pequeno. O gigantismo do Brasil torna tudo mais difícil. Há muitos preconceitos arraigados, de décadas. Notícias, primitivismo, tudo isso pesa. E hoje, com esse movimento dos “cristãos sem Cristo”, a situação piora. Esses pastores sem relação com o verdadeiro Cristo, muitos ligados ao tráfico, fazem de tudo para travar a legalização. É uma batalha inglória.
Sobre Pepe Mujica: um dos grandes. Acredito que a vida continua do outro lado. Quando já estamos velhos, é bonito saber se despedir. Não fiquei triste com a partida dele. Apenas agradeci muito. Há pessoas que deixam tanto, que só podemos agradecer e desejar que descansem em paz. O legado agora é responsabilidade nossa. Cabe a nós mantê-lo vivo. Pela luta, pelas reflexões do Mujica. Em New Orleans, há esse costume bonito de agradecer e celebrar a memória.