Quem aprecia um bom cinema latino-americano vai poder mergulhar no universo cinematográfico de Cuba com a Mostra de Filmes Cubanos Restaurados, que começa nesta terça-feira (22), e vai até dia 3 de agosto, na Caixa Cultural, no Rio de Janeiro. A entrada é gratuita.
Em entrevista ao programa Conversa Bem Viver, Gregory Baltz e Silvia Oroz, curadores da mostra, falam sobre a programação e a importância de Cuba no cenário do cinema mundial.
Além da exibição de 15 filmes, divididos em oito longas-metragens e sete curtas, a programação completa inclui bate-papos, masterclass e mesas de debate com convidados especiais, como a atriz cubana Mirtha Ibarra e a vice-diretora da Cinemateca de Cuba, Lola Calviño.
Um dos destaques da programação são os curtas de Sara Gómez, primeira cineasta negra cubana. Essas exibições vão ao encontro do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, celebrado no dia 25 de julho.
Confira a entrevista na íntegra:
Da onde que surgiu a ideia? Conta um pouquinho como surgiu essa semente.
Silvia – A semente foi uma viagem que fizemos a Cuba e alguém falou dos filmes recuperados. Estávamos na cinemateca de Cuba quando pintou a ideia.
Gregory – Quando surgiu a ideia, fomos colocando para frente e acho que veio um interesse central do próprio diretor da cinemateca de Cuba Luciano Castillo e a vice-diretora Lola Calvino, que vai estar na mostra e participar de debates. Eles têm muito interesse também porque Brasil e Cuba, no cinema, particularmente tiveram uma relação muito forte durante muito tempo.
A escola de cinema de Cuba sempre foi um polo, um farol de encontro latino-americano e mundial. Para o Brasil, sempre foi muito importante. A gente deu aula lá em Cuba e outros cineastas passaram por lá, como por exemplo, Ruy Guerra, que é moçambicano, mas se naturalizou brasileiro, Walter Lima Júnior, Glauber Rocha, Cacá Diegues, enfim.
Então essa relação que tem de Cuba e Brasil fez eles terem ainda mais vontade que essa mostra fosse realizada.
Silvia – Orlando Senna foi o segundo diretor da escola de cinema. Durante a gestão dele fez muita coisa, sobretudo uma gestão super democrática. Então isso cativou todo mundo, fundamentalmente os alunos.
De onde nasce esse espírito de cinema, essa devoção e prioridade em desenvolver cinema em Cuba? Tem a ver com a Revolução Cubana?
Silvia – Sim, tem a ver e muito. Não podemos esquecer que a primeira lei da pós-revolução de Cuba foi a fundação do ICAIC, Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográficas. Ou seja, 6 meses após a Revolução Cubana já estava em andamento essa instituição que foi um farol porque não só ajudou os cineastas cubanos na década de 60, 70 e 80, mas ajudou a muitos cineastas da América Latina. Então de alguma maneira Cuba era como um farol que ajudava todo mundo.
Glauber Rocha passou muito tempo na ilha fazendo a montagem de seus filmes. Claro que absolutamente tudo sem pagar nada, ou seja, se trabalhava por amor a uma ideia.
Gregory – É interessante falar sobre esse cinema pós-revolução. É importante também lembrar que existia um cinema pré-revolucionário, isso é uma coisa que às vezes é esquecida.
Existe um cinema, como existiu em toda a América Latina e no restante do mundo. Ou seja, o cinema latino-americano é um cinema que caminha junto com o cinema europeu desde antes de 1959. E pós 1959, acho que o cinema cubano, especificamente, acompanha os movimentos do modernismo do cinema.
A Nouvelle Vague está acontecendo na França, mas no Brasil está acontecendo o Cinema Novo, em Cuba está acontecendo o Nuevo Cine Latinoamericano. Essas ondas do modernismo no cinema estão acontecendo. Podemos compreender esse cinema pós-revolucionário como um cinema de linguagem, mas também um cinema político, como era o Cinema Novo no Brasil.
E temos na nossa mostra especificamente, um dos principais nomes ali, Tomás Gutiérrez Alea, apelidado como Titon. São cinco longas dele, entre eles Memórias do subdesenvolvimento e A Morte de um Burocrata. Acho interessante também a relação desses filmes do Titon com Cuba. Em A Morte de um Burocrata, ele está criticando a burocracia cubana.
Então existia esse espaço também para que ele pudesse, dentro dos seus filmes, fazer críticas ao governo, fazer críticas a como as instituições funcionavam lá dentro, para que se tentasse mudanças. Se conseguisse ou não é outro problema, mas isso também faz parte do processo. Que a gente tenha esse espaço para que possamos fazer filmes que possam, digamos, espetar um pouco quem está em cima.
Silvia – E o filme também da Sara Gómez, que é a primeira diretora cubana e por acaso negra. É uma crítica às estruturas machistas e patriarcais de Cuba. Esse filme foi feito em 1973, 1974, por aí. Ou seja, isso também estava na ordem do dia, estava em plena discussão e não foi um filme censurado. Isso é muito importante.
O que caracteriza o cinema cubano, principalmente pós-revolução, a partir da escola de cinema que tanto investiu, que tanto internacionalizou esses debates latino-americanos. Qual é o legado do cinema cubano?
Silvia – O cinema cubano está muito ligado à Nouvelle Vague francesa. Vamos ver em todos os filmes do começo da revolução até os anos 1980, uma linguagem bem relacionada com a Nouvelle Vague, mas é uma linguagem que está absorvendo também os contextos latino-americanos.
Então fica uma coisa interessantíssima porque é um estilo que está relacionado, a essa altura do campeonato, a um estilo global porque já estava na Itália, nos Estados Unidos, na República Tcheca, mas é uma Nouvelle Vague com pitacos de América Latina.
É até engraçado porque nós vemos essa Nouvelle Vague com formas de falar completamente alheias à Nouvelle Vague (francesa), mas que se incorporam. E também tem outra coisa importante que não podemos esquecer: Agnès Varda, Jacques Demy, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Louis Malle, todo mundo foi à Cuba e filmou algo em Cuba. Era como se, nesse período, Cuba não estivesse isolada. A intelectualidade do momento estava com ela. Tem um filme de Agnès Varda, Saudações aos Cubanos, que é lindíssimo. É bem Agnès Varda, mas também tem elementos cubanos.
Gregory – O interessante também é que todos os movimentos cinematográficos, até mesmo no Brasil, com o Cinema Novo, acabaram se entendendo como um novo movimento, não por uma unidade de linguagem, mas talvez mais pela amizade de quem participa do grupo, pela unidade de pensamento político.
Se você assistir um filme do Júlio Garcia Espinosa, diretor cubano, e se você assistir um filme do Tomás Gutiérrez Alea, são dois grandes representantes Nuevo Cine Latino-americano, mas com tipos de cinema totalmente distintos.
O Tomás Gutiérrez Alea talvez seja bem mais irônico, faça mais comédias, seja mais ácido no tipo de humor. E o Júlio talvez seja mais democrático, não usa tanta acidez quanto o Alea. Mas eles fazem parte do mesmo grupo, estão discutindo questões importantes para Cuba e para o mundo.
Quando Titon faz o filme A morte de um burocrata ele não está discutindo só sobre a burocracia cubana, ele está discutindo a burocracia como um problema do mundo institucional.