Como se formou a grande comunidade de libaneses e sírios que vivem no Brasil? Qual é a relação entre o colonialismo europeu e a forma como interpretamos a cultura dos povos do Oriente Médio? E o que esse colonialismo tem a ver com as instabilidades geopolíticas da região?
“Ninguém está dizendo que não haja violência, que não haja questões. Mas, por exemplo, o caso palestino, que há mais de 70 anos atinge a população palestina de forma brutal com a criação do Estado de Israel, foi uma ação do colonialismo britânico. Essa noção de que árabes e judeus vivem uma vontade irresistível de se matar por séculos é completamente falaciosa”, explica o professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Murilo Meihy, em entrevista ao Conversa Bem Viver .
O pesquisador também é doutor em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Os Libaneses, publicado pela editora Contexto. Meihy discute o processo de migração desses povos para o Brasil e as influências mútuas entre o país sul-americano e o Oriente Médio. Além disso, ele desmitifica estereótipos presentes no ocidente sobre a população e os costumes médio-oriental.
“Ainda que o Brasil, por exemplo, esteja entre os 10 países com maior índice de violência de gênero no mundo, nós temos uma imagem do islã como uma civilização que oprime significativamente as mulheres”, exemplifica.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Como são as vivências de famílias migrantes que vêm do Líbano para o Brasil? O que elas revelam sobre as particularidades nas relações entre os dois países?
Murilo Meihy: Tem algumas informações sobre a relação Brasil e Líbano que são impressionantes. O Líbano hoje deve ter aproximadamente 6 milhões e meio de habitantes. Há estudos que falam que, entre libaneses e descendentes de libaneses, há aproximadamente 7 milhões só no território brasileiro. Então, é muito provável que tenhamos atualmente um quadro em que há mais libaneses no Brasil do que no Líbano.
Se nós tomarmos a diáspora como um todo, considerando também, por exemplo, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, Emirados Árabes e vários outros países, podemos afirmar com bastante segurança que há mais libaneses espalhados no mundo do que necessariamente dentro do território libanês.
Isso é um sinal muito claro de uma história conturbada, sobretudo do ponto de vista político, que se arrastou por uma série de conflitos e questões econômicas brutais, como a que o Líbano vive atualmente, mas também a guerra civil que fez com que o país se reconstruísse pela diáspora. Muitos daqueles filhos, netos e descendentes, de um modo geral, dos libaneses diaspóricos reconstruíram a identidade do país por meio da relação afetiva.
No caso brasileiro, temos algumas características muito importantes. Tivemos uma primeira onda de integração na segunda metade do século 19, antes mesmo de o Líbano e a Síria existirem como Estados nacionais, quando os migrantes vieram para cá, sobretudo movidos por uma crise econômica profunda e pela queda da indústria da seda na região.
Houve um movimento muito forte de empobrecimento da população, e esses indivíduos passam a reconstruir a vida indo para outros lugares. Geralmente, pegavam o navio e vinham para a América, iam descendo de acordo com as cotas de imigração, alguns em Buenos Aires [Argentina], alguns no Rio de Janeiro, outros em Santos, e assim sucessivamente.
Assim, se construiu, a partir do século 19, uma rede de imigração que, originalmente, era para ser temporária, na qual o imigrante ficaria aqui por dois anos, acumularia recursos econômicos e voltaria para sua terra de origem. Mas, pela instabilidade política e econômica da região de origem, essa imigração passou a ser permanente.
Dessa forma, outros membros das famílias vão chegando e a rede vai se construindo, o que explica a presença inicial dos libaneses e sírios no Brasil. Naquela época, eles eram de maioria cristã e vinham para o Brasil tentar a vida, reconstruir a vida a partir de questões econômicas.
A partir da segunda metade do século 20, essa imigração muda e passa a ter um perfil social e étnico diferente. Começamos a ver uma imigração crescente de muçulmanos, motivada, por exemplo, por instabilidades geopolíticas no Oriente Médio. Era o contexto da Guerra Fria, da disputa entre União Soviética e Estados Unidos pelo controle geopolítico do mundo, e o Oriente Médio é, tradicionalmente, uma terra de difícil alinhamento com os Estados Unidos. Essas tensões também levaram a uma migração sobretudo de muçulmanos.
Depois, a terceira grande onda foi na guerra civil, entre 1975 e 1989, quando vieram muitas pessoas fugindo daquele contexto de violência. Foi uma guerra civil sangrenta e fez com que a migração ganhasse, principalmente no Brasil, um sentido mais amplo, porque já havia uma rede aqui desde o século 19.
Por fim, a última grande onda de migração, sobretudo de sírios, aconteceu a partir de 2011, com a chamada Primavera Árabe, revoltas que intensificaram as saídas da região. O Brasil não era um país prioritário dessa migração no primeiro momento, mas também recebeu sírios e libaneses.
Em síntese, foram vários períodos diferentes, mas todos construindo relações afetivas com o Brasil e com sua terra de origem muito fortes. Então, temos um panorama um pouco mais diverso, por conta dessas ondas migratórias.
O que motiva as instabilidades no Oriente Médio e qual é o papel do colonialismo nesse contexto?
Essa é uma grande característica do impacto do colonialismo europeu sobre a África e a Ásia a partir do século 19, até as independências da maioria desses países. O colonialismo europeu não chegou na África e na Ásia e sobretudo no Oriente Médio apenas com tropas e soldados, o que seria o “regimento clássico” sobre o que é uma ocupação territorial. Também chegou com intelectuais e formas de pensar o mundo, desdobramentos do pensamento científico que fazem com que se estabeleça, portanto, uma lógica de competição e rivalidade entre civilizações.
Isso fica muito claro quando, por exemplo, a partir do século 19, se institui que o progresso material trazido pela Revolução Industrial daria à Europa uma superioridade civilizacional em relação a africanos e asiáticos, que estariam “atrasados” no desenvolvimento tecnológico.
Essa foi uma justificativa primordial para que países como Inglaterra, França e vários outros da Europa Ocidental fossem para o território africano e médio-oriental com a tentativa de estabelecer ali influência geopolítica e presença territorial.
Por exemplo, Napoleão [Bonaparte], quando chega ao Egito, no final do século 18, além de soldados, leva botânicos, pintores, arquitetos e artistas que vão reconstruir uma imagem do Oriente totalmente conveniente aos propósitos do colonialismo europeu. Um Oriente exótico, primitivo e atrasado.
Mesmo com o fim formal do colonialismo, do ponto de vista político, esse imaginário continua sobrevivendo na forma de se conceber o Oriente. Por isso, tradicionalmente, o Oriente Médio vem sendo retratado como espaço da violência e de ameaça por excelência.
Ainda que o Brasil, por exemplo, esteja entre os 10 países com maior índice de violência de gênero no mundo, nós temos uma imagem do islã como uma civilização que oprime significativamente as mulheres. É óbvio que ninguém discute que naquela parte do mundo há uma uma sociedade patriarcal vigente. Mas, partindo do Brasil, por exemplo, apontar o Oriente como o espaço desse tipo de violência, chega a ser uma incongruência, porque nós temos aqui índices alarmantes.
Então, na verdade, a principal herança do colonialismo europeu sobre o Oriente Médio é justamente uma forma de colonizar o pensamento, de estabelecer a identidade dos impérios europeus e atribuir aos orientais características que eles não reconhecem em si mesmos.
O oriental, especialmente o árabe muçulmano, é sempre o outro. É sempre aqueles que, enquanto nós somos a civilização, eles são a barbárie. Enquanto nós somos o avanço, eles são um atraso.
Ninguém está dizendo que não haja violência, que não haja questões. Mas, por exemplo, o caso palestino, que há mais de 70 anos atinge a população palestina de forma brutal com a criação do Estado de Israel, foi uma ação do colonialismo britânico.
Essa noção de que árabes e judeus vivem uma vontade irresistível de se matar, por séculos, é completamente falaciosa. Houve um problema geopolítico criado em meados do século 20, que foi dar a autorização para que um povo construísse um estado nacional em uma terra já habitada por outro povo, e isso era um projeto originalmente do colonialismo britânico.
Então, grande parte dos problemas geopolíticos envolvendo o Oriente Médio tem uma parcela de responsabilidade histórica da presença dos impérios europeus.
O Líbano, assim como outros países do Oriente Médio, tem uma cultura de plantação e cultivo de maconha. Como a visão ocidentalizada impacta nesse aspecto cultural?
Esse é um caso bastante curioso, porque inclusive há justificativas geopolíticas para o enfrentamento de determinados grupos no Líbano, em razão da sua vinculação com o cultivo da cannabis.
De fato, o Líbano é um país com sérios problemas para que seu Estado nacional construa leis minimamente razoáveis. Só para termos uma ideia, o caso mais emblemático foi a tentativa de proibição do consumo de tabaco, há alguns anos atrás. Retiraram o tabaco, que é um produto cultural dos libaneses, e isso fez com que a população se revoltasse contra o próprio governo.
O caso da maconha, em que há ausência do Estado na regulamentação de um produto que gera dividendos econômicos importantes para uma região inteira dentro do país, é sempre utilizado de forma punitiva do ponto de vista político, infelizmente.
A maioria da população libanesa tem a ideia de que a cannabis não é necessariamente um um produto cuja produção deva ser punida. Mas o que temos, na verdade, é que, na ausência de uma regulamentação, a cannabis funciona como uma espécie de um produto ambíguo, porque há, em determinados momentos, a proibição do consumo, mas não há a proibição da venda.
Isso é um traço muito clássico de um Estado nacional completamente regido por outras forças, que não as forças políticas. Você tem uma parte da população libanesa que se relaciona de maneira muito tranquila com esse elemento e o caráter punitivo não afeta a produção, mas tem também outros mais conservadores, que veem isso não necessariamente como um problema de consumo e distribuição, mas como um grupo político rival utiliza os ganhos dessa produção para se fortalecer. Não é uma questão de saúde pública, porque essa já está resolvida dentro do Líbano. A questão ligada à produção da cannabis é uma questão política.
Nós sabemos que há famílias inteiras que sobrevivem em determinadas regiões do Líbano da produção de uma planta que é absolutamente comum, como é o alface, como é qualquer outra.
Na verdade, há altos e baixos em relação à cannabis que dependem muito do quadro político do país. Se é um quadro mais conservador, o discurso ocidental fica um pouco mais forte. Em momentos menos conservadores, temos uma relação muito mais inteligente com a produção, a venda e o consumo da cannabis no território libanês.
Conversa Bem Viver
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