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Brasil de Fato Entrevista

Bancas de heteroidentificação expõem dilemas da população parda e demandam formação mais adequada, diz antropóloga

Gabriela Bacelar também comentou debates sobre colorismo no Brasil e a polêmica do movimento pardo na internet

A categoria “pardo” nunca esteve completamente resolvida no debate racial brasileiro, nem na teoria, nem na prática política. É o que avalia a antropóloga Gabriela Bacelar, doutoranda na Universidade de São Paulo (USP), autora da dissertação Contra a mestiçagem negra, pele clara, anticolorismo e comissões de heteroidentificação racial, que será lançada em livro. Ela pesquisa desde 2018 os conflitos em torno da autodeclaração racial e as disputas em torno das políticas de reparação.

“De fato, a categoria ‘pardo’ nunca esteve resolvida. Por mais que tenhamos um acúmulo histórico, teórico, político sobre as questões raciais, a categoria parda sempre permaneceu como um dilema”, afirma Bacelar, em entrevista ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato. Esse dilema, segundo ela, foi levado para a política através do sistema de ações afirmativas, como as cotas raciais, que tem tentado enfrentar as dificuldades em definir quem se encaixa nessa classificação.

A pesquisadora ressalta que o processo de formação das comissões de heteroidentificação provoca uma reflexão sobre as próprias identidades dos membros que participam da avaliação. “Muitos revisitaram a sua autodeclaração, se repensaram; chegaram com uma autodeclaração e saíram com outra, ou chegaram com autodeclaração e permaneceram, mas complexificaram um pouco mais essa elaboração de si”, relata, a partir do acompanhamento que fez dessas bancas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

No entanto, Bacelar alerta para os problemas no processo. “Não existe política de risco zero. Existem falhas nesse processo, sim. Mas existem mecanismos a partir dos quais elas podem e devem ser corrigidas: através do recurso em última instância, do sistema judiciário”, explica.

Mas o sistema judicial, pontua, pode estar desalinhado com os interesses da comunidade negra, para a qual foram desenhadas as políticas afirmativas. “Existe uma porcentagem muito alta de pessoas que vão acessar a justiça e que vão ter o seu pleito deferido, mas essa proporção tão alta reflete de fato uma correção de injustiças ou reflete uma falta de alinhamento desse sistema judiciário com a perspectiva das comissões e do mundo?”, questiona.

Ela destaca que as comissões, embora recentes, precisam ser aprimoradas a partir de maior fiscalização e qualificação. “Em primeiro lugar, precisa haver uma maior fiscalização sobre o funcionamento dessas comissões. Existem parâmetros que vão dizer, por exemplo, que uma pessoa para compor a comissão precisa ter experiência anterior relacionada a uma das questões étnico-raciais, seja por meio de uma disciplina de curso ou pesquisa que realizou”, explica.

“Se essa pessoa não tem essa experiência, que a instituição forneça essa formação. Existe um parâmetro razoável e ele precisa ser respeitado. Acho que alinhar uma boa fiscalização com uma boa formação já é meio caminho andado.”

Bacelar reforça que o conteúdo da formação também deve ser adequado e específico. “Não é qualquer curso do que se chama de ‘letramento racial’ que vai funcionar. Esses cursos são arbitrários, ministrados por especialistas que decidem o que é importante. O curso de letramento racial não dá conta da especificidade do trabalho das comissões, que está muito centrado nos problemas relativos à categoria ‘pardo’, na diversidade regional, e na diversidade dos candidatos.”

Para a antropóloga, os desafios da avaliação variam conforme regiões e contextos, e essa diversidade deve ser parte central do currículo das formações.

Colorismo é roupagem para racismo

O debate sobre colorismo tem ganhado espaço no Brasil, especialmente nas redes sociais e entre coletivos negros. Para Bacelar, é preciso cautela ao importar conceitos formulados em outros contextos. Em sua dissertação de mestrado, ela propõe o termo “anticolorismo” como um chamado político para o antirracismo no país.

“Precisamos nos comprometer com o antirracismo, o combatendo em todas as suas formas de manifestação. Se uma dessas formas é essa hierarquia interna na comunidade negra, isso também precisa ser combatido”, afirma.

Para ela, muitos debates que hoje giram em torno do colorismo substituem o termo racismo, ainda considerado “assunto não grato”. “Se é uma forma de racismo, vamos tratar como racismo”, defende.

Gabriela ressalta que a estrutura racial brasileira é profundamente diferente da estadunidense, onde o conceito de colorismo ganhou força. Enquanto nos EUA houve um regime formal de segregação e o surgimento de uma elite negra de pele mais clara, no Brasil o modelo foi pautado pelo “mito da democracia racial” e uma extensa miscigenação entre as classes populares. “Nunca se formou no Brasil uma elite preta, parda ou mulata no poder econômico, político ou social. Então não faz sentido importar essa categoria”, afirma.

Outro ponto de crítica levantado por ela é o uso do colorismo para reforçar rivalidades entre pretos e pardos e deslegitimar o pertencimento racial de pessoas de pele mais clara. “Essa lógica de que pardos seriam ‘menos negros’ ou não mereceriam políticas afirmativas é falsa e prejudicial. O ‘anticolorismo’ propõe deslocar esse discurso e focar nas diferentes formas de racialização que atravessam gênero, orientação sexual, classe e tonalidade da pele, sem hierarquizar essas vivências.”

Na visão da pesquisadora, pensar o colorismo como oportunidade para refletir sobre a diversidade dentro da população negra é mais produtivo do que usá-lo como régua de quem é “mais” ou “menos” negro. “No Brasil, os indicadores [sociais] de pretos e pardos são semelhantes. As diferenças existem, mas elas devem ser compreendidas como marcadores da diferença, não como base para disputar lugar dentro da negritude.”

O polêmico movimento pardo

Movimentos que reivindicam uma identidade parda afastada do movimento negro também têm ganhado força nas redes sociais. Apesar de se apresentarem como novidade, essas construções têm raízes antigas, associadas à ideia de um “limbo racial” no qual parte da população brasileira não se sentiria nem negra, nem branca. Para Gabriela Bacelar, essa noção é, antes de tudo, retórica, e reproduz confusões históricas que servem ao “mito da democracia racial”.

“Temos uma estrutura de hierarquia racial muito bem demarcada, a partir das experiências de racismo. É difícil compreender que um grupo imenso de pessoas submetidas ao racismo ainda esteja em uma espécie de ‘não lugar’”, afirma.

Para ela, o sentimento de não pertencimento à negritude está ligado a uma concepção restrita, muitas vezes limitada a traços fenotípicos associados à população preta, que não comporta a complexidade do que é ser negro no Brasil. “No Brasil, o negro é mestiço: com povos indígenas, fronteiriços, europeus, asiáticos. Ao não compreender essa amplitude, a negrura é elaborada como um espaço muito restrito, e aí, muita gente não cabe.”

Ela critica ainda a atuação de influenciadores digitais que se colocam como “coaches da autodeclaração racial”, oferecendo saídas simplificadas para um debate que deveria ser político, histórico e coletivo. “Ninguém pode oferecer ser coach de autodeclaração racial. As pessoas precisam chegar a isso por conta própria, compreendendo inclusive que pode haver uma diferença entre sua elaboração subjetiva e a categoria do Estado”, defende.

Gabriela defende que é possível reconhecer as contradições da própria identidade sem deslegitimar as políticas públicas de reparação. “Você pode se declarar como quiser — cabocla, negra, azul, queimadinha de sol —, mas é preciso entender que as categorias do Estado têm função específica, e se destinam a reparar a desigualdade racial histórica. Isso não deveria ser difícil de compreender.”

Para ouvir e assistir

BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato98.9 FM na Grande São Paulo, com transmissão simultânea pelo YouTube do Brasil de Fato.

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