Ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato, o antropólogo e psicanalista Leonardo Siqueira traçou um diagnóstico sobre a rejeição da juventude à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Para ele, a desilusão com os empregos formais não é um fenômeno isolado, mas reflexo de transformações estruturais tanto no mundo do trabalho quanto na educação, e da forma como ambas passaram a operar sob lógica de competição, individualismo e sofrimento.
“Hoje as empresas já não são mais pensadas como uma comunidade de trabalhadores”, diz Siqueira. O modelo anterior, baseado na expectativa de construir uma carreira estável, deu lugar a ambientes corporativos marcados pela concorrência interna e pela insegurança. A gestão empresarial, observa o antropólogo, se beneficia da ansiedade ao “induzir um pouco de sofrimento” para extrair mais produtividade no curto prazo.
Nas escolas, o cenário não é muito diferente. “Estamos colocando na nossa juventude uma prática estritamente competitiva e individualista”, afirma. Para Siqueira, o vestibular, nesse sentido, é o ápice da responsabilização individual, onde “num dia o jovem vai decidir o seu futuro a partir daquilo que ele conseguiu acumular ou não”. “Precisamos repensar a estrutura do vestibular”, defende, citando como exemplo os processos anteriores aos anos 70, com entrevistas e cartas de intenção.
O psicanalista indica que esses problemas têm raízes na reforma do ensino durante a ditadura militar (1964-1985), quando escolas deixaram de ser um espaço de inclusão e formação cidadã, com a inserção da lógica da competição no sistema educacional.
O fenômeno ainda teria sido agravado com o novo ensino médio, apresentado no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), que “flexibilizou disciplinas centrais e inseriu o ideário do ‘projeto de vida’ na grade, com planejamentos para o mercado de trabalho”. “Hoje temos uma escola que não concorre com o discurso vigente, mas aprofunda”, lamenta.
Juventude não sonha mais com o futuro
Diante de tudo isso, “temos um fenômeno hoje na nossa juventude que eles têm dificuldade de sonhar com o futuro”, afirma Siqueira. Nesse contexto de frustração e expectativas estreitas, as promessas rápidas de enriquecimento, seja como influenciador digital, jogador de bets (apostas esportivas) ou streamer de jogo, se tornam mais sedutoras do que a realidade de baixos salários e nenhuma perspectiva de crescimento nas ocupações disponíveis.
Ao analisar o discurso de autonomia e liberdade nas redes sociais, especialmente quando associado ao trabalho como influenciador ou criador de conteúdo íntimo, como na plataforma OnlyFans, Siqueira afirma que essa é uma narrativa classista, que ignora as desigualdades de raça e renda. “É um ideário que muito jovem compra, mas é um ideário de classe média”, indica.
Trabalhar com redes exige capital social e simbólico acumulado, além de uma estrutura (equipe, tempo, aparência) que não está disponível para jovens em situação de vulnerabilidade, aponta o psicanalista. “Eles vendem isso como se fosse algo do sucesso próprio, da sua realização individual. […] Isso é uma grande ilusão”, analisa, citando o caso da influencer Virginia Fonseca na CPI das bets.
Para o antropólogo, o desprezo pela CLT não é um simples modismo, mas o espelho de uma sociedade que não oferece alternativas viáveis de estabilidade e segurança para grande parte da população. “A queda de popularidade do governo Lula (PT), apesar dos índices de desemprego em decrescência, significa que esses números talvez digam muito pouco sobre as esperanças e o futuro da nossa juventude. São empregos de baixíssima remuneração. Temos que pensar em um mercado de trabalho que gera empregos relevantes, que paguem bem”, conclui.
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.