A despedida pública da cantora Preta Gil, marcada por rituais escolhidos por ela mesma, traz um debate sobre como lidamos com o fim da vida. Para a jornalista Juliana Dantas, especialista em cuidados paliativos, morte e luto, o caso expõe como ainda somos despreparados para conversar sobre morrer. Ela também comenta como a forma como falamos sobre doenças graves pode ampliar o sofrimento de quem está doente.
“Se a pessoa morre, o câncer morre junto com ela. Então, não é por ali o caminho da conversa”, afirma Dantas ao BdF Entrevista, da Rádio Brasil de Fato. Ela critica o uso de expressões como “lutar contra o câncer” ou “perder a batalha”, que reforçam uma lógica de culpa e afastam as pessoas de cuidados que poderiam aliviar o sofrimento, como os paliativos.
Segundo Dantas, que também é sócia e diretora do Movimento inFINITO e do Instituto Ana Michelle Soares, esse tipo de linguagem coloca quem vive com a doença em um lugar de exigência constante por força, coragem e positividade. “Cria-se uma espécie de meritocracia do adoecimento”, caracteriza. “Se fosse uma batalha, primeiro que não teria fair play (jogo limpo, em inglês), o câncer não tem fair play“, destaca.
Conversas difíceis precisam acontecer
A especialista lembra que essa lógica se manifestou de forma marcante no caso de Preta Gil. Ao longo do tratamento, a cantora recebeu mensagens bem-intencionadas, mas muitas vezes distantes da realidade, conta. “Eram coisas como: ‘já deu tudo certo’. Não deu, não daria, o diagnóstico dela era muito grave”, aponta Dantas. “De quais outros jeitos podemos falar para mostrar que estamos ali, na torcida, mas sem promessas vazias ou frases que encerram a conversa?”, reflete.
Frases feitas como “não desista”, “vai dar tudo certo” ou “Deus sabe o que faz”, embora comuns, podem acabar silenciando quem deseja falar sobre o próprio sofrimento ou sobre o fim da vida, alerta a jornalista. “Quando nos deparamos com essas situações, precisamos estar preparado para estarmos, e não ficar tentando entregar frases prontas que, em vez de acolher, encerram diálogos”, diz.
Para Dantas, é preciso desenvolver o que ela chama de “musculatura emocional” para sustentar essas conversas difíceis. “A missão do Movimento inFINITO e do Instituto Ana Michelle Soares é essa: criar repertório, entregar elementos que agreguem musculatura emocional para que socialmente nos sintamos mais treinado”, explica.
Ela também critica o papel da mídia na manutenção desse discurso. “Se um dia acabarem as histórias de superação, vai ter jornalista sem conseguir fechar a matéria”, ironiza. “E se aquela doença não for superada, onde é o lugar dessas pessoas?”, questiona. Dantas conta que a sua amiga e referência, a jornalista e escritora Ana Michelle Soares, que morreu em 2023, chegou a ser excluída de reportagens por não ter uma trajetória de cura, mesmo sendo uma referência nacional em cuidados paliativos.
Cuidados paliativos para viver bem
A especialista reforça que os cuidados paliativos não são sinônimo de desistência ou fim de linha. Pelo contrário, podem ser oferecidos desde o diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida, mesmo que curável. “Conheço pacientes há 20 anos em cuidados paliativos”, pontua. “Isso só significa que ela está o mais bem cuidada possível, mesmo tendo uma doença grave”, resume.
“Quando não topamos falar sobre a morte, pensamos em morte só com dor e medo. Quando damos um passo adiante, tem dor, medo, vai ter mesmo, mas tem conexão, amor, troca, verdade”, conclui Juliana Dantas.
Para ouvir e assistir
O BdF Entrevista vai ao ar de segunda a sexta-feira, sempre às 21h, na Rádio Brasil de Fato, 98.9 FM na Grande São Paulo. No YouTube do Brasil de Fato o programa é veiculado às 19h.