“Trump não vai ao Vaticano por acaso. Ele não vai rezar.” A análise de Jorge Cláudio Ribeiro, professor de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), resume o que está em jogo na sucessão do papa Francisco: uma disputa política que extrapola os muros do Vaticano e interessa diretamente à extrema direita mundial. O legado do primeiro pontífice da América Latina foi o tema do episódio desta semana do O Estrangeiro, podcast de política internacional do Brasil de Fato, apresentado por Lucas Estanislau e Rodrigo Durão.
Após anos criticando o papa argentino por suas posições progressistas, figuras como o presidente dos Estados Unidos e o da Argentina, Javier Milei, confirmaram presença no funeral do papa, neste sábado (26). Segundo Ribeiro, esse gesto é fruto de um cálculo político. “Esse conclave já começou há muito tempo. Há uma ala oposta a Francisco e às ideias dele, e essa ala está organizada. Está de tocaia, com um punhal verde e amarelo desembainhado”, diz.
Entre os nomes articulados por essa oposição está o cardeal estadunidense Raymond Leo Burke, um dos críticos mais persistentes de Francisco. O professor aponta que, embora os conservadores representem uma minoria entre os cardeais com direito a voto — dos 135 eleitores, 108 foram nomeados pelo papa —, eles se movimentam com estratégia. “A força dessa oposição é a força do catolicismo estadunidense, que é muito conservador, ritualista, moralista e fundamentalista”, explica.
A tensão também se evidencia na Argentina, país de origem do papa. Gabriel Vera Lopes, correspondente do Brasil de Fato em Cuba, explica que o governo Milei, já em crise, vive um impasse diante do luto popular por Francisco, que sempre se posicionou ao lado dos pobres e dos movimentos sociais. “É um problema para o governo de Milei porque as falas e missas do papa contrariam as ideias dos libertários argentinos. Todo mundo está voltando a ler suas encíclicas, a refletir sobre seus ensinamentos, que são contrários às ideias da extrema direita”, aponta o repórter, argentino como Francisco.
Milei, que chegou a chamar o papa de “representação do diabo na Terra”, agora se vê obrigado a fazer reverências públicas. “O governo de Milei está tentando trazer um pouco de calma a essas contradições, indo ao Vaticano. […] Mas a base dele continua odiando Francisco e isso traz uma complicação.”
Legado do papa favorece processos e periferias
Francisco não ocupou apenas o trono de papa, mas abriu processos. “É mais importante abrir processos do que ocupar espaços”, dizia o pontífice, segundo Lopes. A frase resume sua visão de transformação social: mais importante do que cargos ou hierarquias é estimular a participação ativa dos excluídos.
Para o jornalista, três ideias marcaram o papado de Francisco: o protagonismo das periferias; a justiça social como centro da fé cristã; e a misericórdia como fundamento da Igreja. “Para ele, são os sem-terra, os sem-teto, os esquecidos pela história que devem construir um Brasil e um mundo mais justo”, afirma.
Ao invés de priorizar chefes de Estado, o pontífice buscava encontros com migrantes, mulheres discriminadas, pessoas LGBTQIA+ — grupos historicamente marginalizados, inclusive pela própria Igreja. “Depois de muito tempo da Igreja focada nas pautas morais, repressivas, o papa inaugurou um período mais focado nas pessoas, na misericórdia, nos ensinamentos do revolucionário que foi Jesus. Isso é muito difícil de reverter”, avalia Lopes.
O papa da ecologia e dos gestos proféticos
A encíclica Laudato Si’, publicada em 2015 sobre a crise ecológica, exemplifica a atuação do papa como um líder coletivo e profético, para o professor Ribeiro. “Ela não foi escrita por ele sozinho. Ele trabalhou com equipes diversas, incluindo uma cientista judia. Isso reflete o jeito Francisco de trabalhar. […] Ele tentava criar consensos, e conseguiu, não só pela sua autoridade, mas também pelo seu carisma. A presença dele, as viagens, os encontros, os perdões que ele pediu são sinais proféticos”, observa.
“Foi uma voz religiosa em um fórum laico, científico. Francisco fez várias análises nessa encíclica sobre como chegamos ao sacrifício da terra-mãe, como a ciência contribuiu para a devastação do planeta. Ele mencionava ‘os últimos 200 anos’, ou seja, o capitalismo. Influenciou a preocupação ecológica, fez uma oração pela terra… Foram várias medidas, tanto espirituais e intimistas quanto mais coletivas e estruturadas.”
Francisco pediu perdão por crimes cometidos pela Igreja, como no caso das escolas católicas para indígenas no Canadá. Durante uma visita de uma semana ao país, em 2022 — cumprimento de uma promessa feita a delegações indígenas que o encontraram no Vaticano. “Com vergonha e de maneira inequívoca, eu suplico humildemente por perdão pelo mal cometido por tantos cristãos contra os povos indígenas”, declarou. Foi a reafirmação pública de um pedido de desculpas já feito anteriormente em Roma.
Quem pode suceder Francisco?
Com 135 cardeais votantes, o conclave pode surpreender, apesar das chances de brasileiros ocuparem este lugar serem pequenos, na visão do professor Ribeiro. Embora exista uma expectativa sobre nomes do Sul Global, ele alerta contra leituras superficiais. “É preciso evitar certo identitarismo dentro do Colégio dos Cardeais. O fato de um cardeal ser da Ásia ou da África, por exemplo, não significa, necessariamente, que ele esteja alinhado com causas que promovem o avanço da humanidade. Há nomes bastante reacionários, independentemente de sua origem geográfica.”
Do Brasil, sete cardeais votam. Entre eles, Dom Leonardo Steiner, da Amazônia, “nomeado pelo papa para assumir na sua vida o interesse pela Amazônia”, segundo Ribeiro; e Dom Sérgio da Rocha, arcebispo de Salvador: “Ele tem muito interesse pastoral pelas pessoas e faz parte do Conselho de Cardeais, que integra os 60 mais alinhados a Francisco”, afirma o professor. Dom Odilo Scherer, de São Paulo, é apontado como o cardeal brasileiro mais conservador e teria perdido força após articulações malsucedidas no conclave anterior.
O português José Tolentino de Mendonça, teólogo e poeta, é visto como uma possibilidade de sucessão, alinhado ao legado de Francisco. Também ganham destaque o italiano Matteo Zuppi, envolvido em missões de paz na Ucrânia, e o sul-africano Stephen Brislin, engajado na reconciliação pós-apartheid no país. O professor cita ainda o cardeal francês Jean-Marc Aveline, arcebispo de Marselha.
O podcast O Estrangeiro vai ao ar toda quarta-feira às 11 horas no Spotify e YouTube.