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Saúde e medicina indígena ainda são desafio para o SUS

Representatividade impulsiona políticas, mas integração de saberes tradicionais à saúde pública ainda não saiu do papel

A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a crescente participação de representantes das populações originárias na formulação de políticas públicas do país representaram um marco histórico sem precedentes no poder público brasileiro. A mudança inédita causa reflexos em diversos setores, inclusive na saúde pública.

Desde 2023, a atual gestão federal tem intensificado ações, mobilizado forças-tarefa e ampliado o financiamento destinado ao fortalecimento da saúde indígena. Essa conjuntura também inaugura no Brasil uma perspectiva igualmente inédita: a possibilidade concreta de integrar as medicinas indígenas ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Com a iniciativa, o Brasil passa a reconhecer e valorizar saberes ancestrais, incorporando práticas tradicionais que têm se mostrado eficazes ao longo de gerações. No entanto, apesar do entusiasmo e da criação de um grupo de trabalho (GT) dedicado ao tema há mais de um ano, a concretização definitiva da pauta ainda não é realidade.

Em janeiro do ano passado, a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, formalizou a criação do GT para elaborar a proposta de estabelecimento de um programa nacional de emprego da medicina indígena no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasi-SUS).

A diretora do Departamento de Atenção Primária à Saúde Indígena (DAPSI), Putira Sacuena, conversou com o podcast Repórter SUS sobre o tema e afirmou que um dos próximos passos será o lançamento de um guia de terminologias da medicina indígena. Na conversa, ela ressaltou a expectativa para a concretização da política.

“Por que nós estamos falando especialista e não pajé? Por que tiramos o tradicional e estamos usando indígena? O que é interculturalidade na saúde? Por meio dela, temos um entendimento a partir da educação e não só da saúde. Estamos construindo isso e é uma proposta muito muito boa para as pessoas conhecerem. Mas temos também o sonho de o nosso ministro (da saúde) anunciar que, agora, as medicinas indígenas fazem parte do SUS.”

Segundo Putira Sacuena, o modo indígena de lidar com a vida e a saúde tem muito a contribuir com o SUS e pode trazer avanços ao pensamento exclusivamente acadêmico. “Respeitar e valorizar não é o suficiente para falarmos de uma saúde diferenciada. A sociedade brasileira precisa reconhecer quem ela é, precisa reconhecer outras ciências além dessa ciência que existe, que é ocidental, que não é nossa.”

A especialista também ressaltou a importância dos territórios nessa mudança. “Começamos a ter o entendimento de quanto o SUS precisa avançar nas políticas públicas de saúde a partir dos territórios. Não só os territórios indígenas, mas também os territórios nacionais, populações tradicionais e assim em diante.”

Obstáculos e avanços

Mesmo com os avanços dos últimos anos, outros aspectos da promoção da saúde indígena também ainda enfrentam inúmeros desafios e a desigualdade estrutural do Brasil resume todos eles. Da destruição dos biomas à falta de acesso, a saúde pública voltada para as populações originárias ainda tem um longo caminho a percorrer.

Publicado no ano passado pelo Núcleo Ciência pela Infância, o estudo “Desigualdades em saúde de crianças indígenas” revela dados alarmantes. Segundo o levantamento, a taxa de mortalidade entre bebês indígenas é 55% superior à de não indígenas e o número de mortes de crianças indígenas de até 4 anos é mais que o dobro do registrado em outras populações.

Na lista de principais causas para esse cenário estão doenças infecciosas e intestinais, além de complicações decorrentes da gestação, parto ou puerpério. A dificuldade de acesso a territórios, as barreiras culturais e a alta rotatividade de profissionais de saúde são obstáculos significativos.

Apesar dos desafios, o governo federal tem investido em ações para mitigar essas desigualdades. Por meio do Programa de Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), foram aprovados projetos com um incremento de orçamento de R$ 34,5 milhões para a saúde indígena.

O investimento visa melhorias assistenciais no cuidado integrado e na articulação da rede em relação às linhas de atenção ao câncer de colo do útero e atenção à saúde materna e infantil. Outros projetos preveem orçamento para implementação de soluções digitais de atendimento e o desenvolvimento de uma plataforma de integração de dados de saneamento, qualidade da água e saúde.

No âmbito da participação social, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) divulgou, em fevereiro, diretrizes e objetivos para o trabalho em saúde do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS (Sasisus). Elas levam em consideração princípios como reconhecimento e respeito à autonomia, interculturalidade, diversidade cultural e territorial dos povos indígenas.

Além disso, o texto do CNS tem foco na necessidade de respeito aos sistemas indígenas de saúde, entendidos como as práticas de promoção, proteção e recuperação da saúde orientadas por saberes e lógicas internas das comunidades originárias.

A resolução define ainda a necessidade de formação e qualificação das trabalhadoras e dos trabalhadores da saúde indígena, com inclusão de conhecimentos sobre a cultura e os costumes locais e o intercâmbio entre as “equipes técnicas e os doutores indígenas”.

Tanto a garantia de atendimento, cuidados e acesso quanto a inclusão das medicinas indígenas no SUS exigem uma visão diferenciada de saúde e da sociedade, que reconheça a pluralidade de saberes e a importância da superação de preconceitos.

“Estamos mudando o entendimento sobre as medicinas indígenas. Saímos daquele contexto de ‘tradicionais’ – onde o processo colonizatório nos colocou todos juntos, povos indígenas, quilombola, ribeirinho, extrativista – dissemos, ‘nossa medicina indígena!’ É um contexto que traz um reconhecimento mais forte. É algo extraordinário. Estamos criando o primeiro programa nacional de medicinas indígenas, ou seja, o primeiro programa originário, de fato, do Brasil.”

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