Na próxima semana, a comunidade internacional encara a missão histórica de decidir se aprova ou não o primeiro marco legal para enfrentamento global de futuras pandemias. A demanda surge como resposta aos custos humanos e econômicos devastadores da covid-19, que expôs falhas crônicas na cooperação entre nações.
O texto final do Acordo de Pandemias chega ao plenário da 78ª Assembleia Mundial da Saúde (Genebra, 19 a 27 de maio), após quase quatro anos de debates acalorados – e carrega omissões preocupantes, como a falta de mecanismos vinculantes e a ausência de regras claras para garantir equidade no acesso a vacinas e tratamentos.
“Não existe nenhum instrumento dentro da própria Organização Mundial da Saúde (OMS) ou na comunidade internacional que tenha um poder de coação ou de coerção para que esses países realmente cumpram o que o texto está propondo”, alerta o especialista em saúde e relações internacionais Leandro Viegas.
Secretário executivo do Grupo de Trabalho sobre o Acordo de Pandemias e Reforma do Regulamento Sanitário Internacional da Universidade de São Paulo (USP) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ele conversou com o podcast Repórter SUS sobre o tema. Ele ressalta a importância do compromisso global, mas observa expectativas frustradas.
Sem sanções ou metas obrigatórias, o documento não resolve impasses estratégicos, como a transferência de tecnologia para países pobres ou a suspensão de patentes em crises sanitárias. A indefinição reforça o temor de que as lições da pandemia mais letal do século permaneçam no papel e que o mundo repita erros que custaram milhões de vidas.
“É um drama permanente e não houve nenhum compromisso no sentido da flexibilização de direitos de propriedade intelectual no caso de pandemias. A linguagem que ficou é de que os países podem ou não adotar licenças voluntárias”, adverte Leandro Viegas.
Segundo ele, o acordo final não reforça, por exemplo, a Declaração de Doha sobre patentes e questões de saúde. Há quase 25 anos, a Organização Mundial do Comércio (OMC) já tem definições que visam equilibrar os direitos de propriedade intelectual e as necessidades de saúde pública, particularmente o acesso a medicamentos essenciais.
Leandro Viegas aponta ainda que muitos compromissos presentes no texto inicial do acordo de pandemias não estão na versão final. “A linguagem do tratado em si é diluída, ela não é vinculante. Há uma série de trechos no texto que dão a entender que os estados podem fazer se quiserem e não têm realmente um compromisso para fazer isso.”
O caráter voluntário dos compromissos também atinge o compartilhamento de informações sobre patógenos. A ideia por trás do sistema é de que as nações troquem informações sobre a identificação, progressão e propagação de possíveis agentes causadores de doenças no território nacional para desenvolvimento de soluções ao nível internacional.
Viegas também aponta como problemática a falta de definição de instrumentos de financiamento específicos para o acordo. Nas palavras dele, essa questão se agrava pelo atual contexto internacional. Ainda assim, o especialista afirma que o caráter de “uma só saúde” trazido pela primeira vez em um acordo internacional é um avanço considerável.
“Não existia um tratado internacional. Então, esse é um ponto muito positivo, sobretudo no contexto geopolítico em que nos encontramos. É muito importante, inclusive, que o texto tenha sido finalizado agora, porque tínhamos a expectativa de que tudo poderia acontecer. Ele tem essa força política de ter sido negociado e finalizado agora”.
A partir da aprovação do acordo internacional na Assembleia Mundial da Saúde, os países entram em processo de discussão interna do texto. No Brasil, isso significa que o Congresso Nacional precisa endossar a incorporação do instrumento no ordenamento jurídico nacional, o que, de acordo com Leandro Viegas, vai exigir mobilização.
“Temos ainda uma segunda fase que diz respeito à nossa capacidade interna. O texto será trazido para o meio doméstico brasileiro e vamos precisar de uma mobilização muito grande dos atores relevantes daqui. Não só de órgãos de governos, mas da sociedade civil e da academia para que a relevância desse instrumento esteja na ordem do dia”.