Conforme o uso de ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa avança na sociedade, cresce também o número de pessoas que procuram soluções para o sofrimento mental nessas plataformas. Uma pesquisa publicada no primeiro semestre deste ano pela revista internacional Harvard Business Review mostra que o aconselhamento terapêutico é a principal motivação para uso das IAs, seguido pela busca por companhia.
Também figuram entre as motivações a vontade de organizar a vida pessoal, de encontrar um propósito, e de ter uma vida mais saudável. Esses aspectos indicam que os chats de inteligência artificial generativa têm sido mais procurados para suprir necessidades emocionais e sociais do que para pesquisas e produção de conteúdo. Uma realidade que preocupa, principalmente no que diz respeito à saúde mental.
Em entrevista ao podcast Repórter SUS, a psicóloga Angélica Capelari, da Associação Brasileira de Ciências do Comportamento e da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia, afirma que o cenário explicita uma busca cada vez maior por soluções imediatas. Ela ressalta, no entanto, que processos terapêuticos demandam tempo.
“Toda a questão da informatização, da internet e da globalização tem aumentado o processo de as pessoas procurarem soluções rápidas para os sofrimentos delas. Mas, no campo da psicologia, é muito difícil que tenhamos uma proposta de uma solução rápida, até porque, dependendo de qual for o sofrimento da pessoa, não é uma coisa solucionável.”
A IA Generativa é um tipo de Inteligência Artificial que gera conteúdos a partir de uma vasta quantidade de dados usando modelos de aprendizado de máquina. Ela consegue reconhecer e reproduzir padrões para criar textos e imagens, por exemplo. O problema é que essa estrutura é incapaz de compreender contextos humanos complexos, e pode produzir respostas inadequadas e prejudiciais.
Ao simular empatia, as ferramentas replicam padrões de linguagem e padrões estatísticos. Mas sua capacidade não alcança a diversidade de emoções e cenários que permeiam o cotidiano da sociedade e não calcula as possíveis consequências a longo prazo de um conselho, o que pode ter consequências devastadoras.
Sem nuances sociais e culturais, as plataformas podem interpretar mal uma situação, fazer suposições perigosas ou simplificar problemas graves, afinal, os modelos não têm a formação clínica para avaliar riscos e intervir em crises. Além disso, a IA não está vinculada a um código de ética profissional que garanta o bem-estar dos pacientes.
No mês passado, pela primeira vez, uma empresa de inteligência artificial foi processada por uma família após uma morte. Um jovem de 16 anos, que vivia na Califórnia, nos Estados Unidos, se matou alguns meses após ter iniciado consultas sobre suicídio com o ChatGPT. Os pais do garoto acusam a OpenAI, proprietária da ferramenta, de homicídio culposo e alegam que a plataforma validou ideias autodestrutivas.
A prática de buscar soluções para a saúde mental em plataformas de IA preocupa profissionais da psicologia e da psiquiatria, que veem riscos significativos na ausência de acompanhamento humano qualificado. Nos últimos meses, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem se posicionado ativamente sobre o tema.
Em maio, uma nota da entidade alertou para a necessidade de que qualquer ferramenta tecnológica utilizada na psicologia esteja alinhada com os princípios éticos da profissão e seja desenvolvida por profissionais habilitados, que possam ser responsabilizados por sua aplicação.
Poucos meses depois, em julho, o CFP emitiu um alerta sobre os riscos de propostas de uso de inteligência artificial em saúde mental no Sistema Único de Saúde (SUS). O posicionamento reforça a preocupação com simplificação indevida de processos complexos de cuidado em saúde mental, especialmente em uma estrutura pública que já enfrenta desafios estruturais.
Angélica Capelari reforça que a psicologia não é uma ciência de respostas prontas “Vivemos uma ciência que é fomentada por perguntas e não por respostas. Não podemos dar uma receita do que fazer ao paciente, até porque pode ser que essa receita dê errado, porque ela vai variar de pessoa para pessoa. Cada pessoa é única.”
O SUS pode ajudar
A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) do SUS atua de maneira articulada e oferece serviços e atendimento tanto para casos iniciais quanto para situações mais complexas. O primeiro atendimento é feito nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). São essas equipes que vão entender quais casos devem ser levados para a média e a alta complexidade.
Ainda na atenção primária, pacientes contam com a atuação do programa Saúde da Família, que por definição tem profissionais de base territorial, e das equipes multiprofissionais do projeto eMulti. Para moradores e moradoras de rua, a atenção primária também pode ser acessada nos Consultórios de Rua.
É nessa fase do atendimento que ocorre o acolhimento, a prevenção de agravos e os diagnósticos. A depender do caso, o tratamento e a reabilitação podem ser feitos totalmente na atenção básica. A saúde mental também está inserida na lógica de atendimento dos pontos de atenção de urgências e emergências, integrados pelo Samu, salas de estabilização, Unidades de Pronto Atendimento 24 horas e atenção domiciliar.
A partir do atendimento inicial, as equipes do SUS podem identificar casos que necessitam de cuidados mais complexos. Para essas situações, o sistema também tem uma rede de atenção interligada.
Estratégicos para a saúde mental, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) realizam acompanhamento clínico de diversos níveis. Há atendimento exclusivo para públicos específicos como crianças e adolescentes e usuários e usuárias de drogas e álcool.
O Brasil tem hoje mais de 2,8 mil unidades dos Caps, divididas em diferentes modalidades, conforme o público atendido e a complexidade do cuidado. Eles estão localizados em 1.910 municípios. Já os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) são moradias inseridas na comunidade, destinadas a pessoas com transtornos mentais que passaram por longas internações psiquiátricas e não possuem suporte social e laços familiares.
Nas chamadas Unidades de Acolhimento (UAs), pacientes encontram cuidados contínuos de saúde, com funcionamento 24 horas, em ambiente residencial, para pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.
O Repórter SUS é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Novos programas são lançados toda semana. Ouça aqui os episódios anteriores.