Parece uma conversa sobre comida, mas é também sobre música, memória e afeto. No episódio 75 do Sabe Som?, Thiago França recebe Anelis Assumpção para falar do que existe por trás da música, os processos criativos, a família, as histórias que temperam a vida. “É mágico, infinito, é possível ir para milhões de lugares”, conta.
A artista revela os desafios enfrentados para equilibrar a arte que acredita — e pratica— e demandas pragmáticas do universo do trabalho. “Carreira é política. Tem uma série de códigos que bicho… é isso, assim. É política no fim das contas”, afirma. Recusa, porém, abrir mão de posicionamento: “Chega uma marca e diz: ‘vamos fazer uma ação, mas sem falar de política’. Eu digo: ‘não posso’. Então não tem acordo”.
“É preciso achar um jeito de falar de política, mas sem falar de política”, ilustra Anelis, ao comentar a necessidade de abordar temas sensíveis no universo artístico.
Com a musicalidade marcada no DNA, Anelis também fala das influências do pai e da irmã, Serena Assumpção, falecida em 2016, em decorrência de um câncer de mama. “Eu fiquei com as coisas dela de cozinha, que eu também já tenho da mãe do Kurumi, da avó dele. Eu adoro esse lugar”, conta Anelis, mostrando a panela herdada da irmã. “Essa panelinha canta lá em casa!”, brinca. “O lascado é o que tem a história”, completa.
Para Anelis, a cozinha é um refúgio e uma extensão da arte, um gesto de afeto. “Na minha casa, ninguém não vai comer. Eu nunca ouvi uma bronca por levar gente para minha casa para comer”.
Neste sentido, a artista critica a lógica da praticidade e do consumo instantâneo. “Nossa relação alimentar está completamente gentrificada. A gente não sabe mexer com as carnes, desde limpar, separar o que é e para que serve cada coisa. Perdemos essa sabedoria”. Apesar disso, valoriza as memórias ligadas à comida: “Amo essas tradições que vêm das histórias e das relações de afeto com a comida”, afirma.
O papo começa com panelas, mas logo se abre para uma reflexão sobre como a cozinha e a música compartilham uma lógica: o tempo. A musicista, que transita por gêneros como reggae, rap, samba e bossa nova, fala sobre as diferentes maneiras de se criar música, e como todo o ambiente em torno disso “é mágico, infinito, e como é possível ir para milhões de lugares.”
Com mais de duas décadas de trajetória, Anelis ironiza que “a música é a mimadinha das artes”, mas reforça que, mesmo assim, sofre pressões de mercado. “Hoje, você tem que bombar o primeiro show, e se não vender 50% dos ingressos, cancela. Esse imediatismo mata a criação. Estamos vivendo um contemporâneo que sufocou a criatividade e a subjetividade do processo”, critica.
Ao longo da carreira, Anelis já fez shows para públicos de diferentes tamanhos, mas garante que conexão não depende de quantidade: “Já fiz show para doze pessoas e foi incrível, eles foram fantásticos, mas já fiz show em festival com muito mais pessoas e não foi a mesma coisa”. Para ela, o que importa é criar vínculos: “Eu não tenho a menor possibilidade de fazer música que não passe por um lugar íntimo, onde eu consigo falar e ouvir sobre intimidades”.
“Todo mundo é um acervo, todo mundo é uma história”
A herança afetiva também aparece no trabalho à frente do Instituto Museu Itamar Assumpção, que completa cinco anos em 2025. “A missão de um museu na sociedade é belíssima e tem a ver com tudo que eu penso. Eu nem sabia que queria ter um museu”, diz.
Desde a morte do pai, em 2003, ela se dedica a organizar e preservar a obra do artista, garantindo autonomia sobre um acervo que não está nas mãos de gravadoras. “Meu pai tinha uma obsessão em ser um artista livre. Pra gente, foi fácil, porque era nosso”, explica.
Esse pioneirismo permitiu que a família criasse projetos como songbooks, remasterizações e documentários, além de disponibilizar material para pesquisadores.
Por fim, a cantora reforça importância de manter-se em movimento, seja com vozes e instrumentos, seja com panelas “com seus lascados e sua tampinha quebrada”, e afirma “todo mundo é um acervo, todo mundo é uma história”.