O assassinato do ambulante senegalês Ngange Mbaye, de 42 anos, por um policial militar no Brás, centro de São Paulo, causou comoção entre lideranças migrantes e ativistas dos direitos humanos. No podcast Três por Quatro, do Brasil de Fato, três convidados analisaram o caso e denunciaram o caráter racista e xenofóbico da violência cometida contra imigrantes negros no Brasil.
Para a atriz e ativista Mariama Bah, nascida no Senegal e moradora do Brasil há dez anos, é urgente que os movimentos populares brasileiros se aproximem das comunidades migrantes. “Parece que estamos nos lugares errados de luta, ou gritando nos lugares errados”, afirmou. “Quem é maltratado e desumanizado são os corpos africanos e latino-americanos. Precisamos rever os movimentos pretos e sociais, precisamos deles próximos. Somos um grupo de pessoas diversas que, em vez e pensar no bem coletivo, puxa a corda cada um para o seu lado. Imigrantes ou não, as vítimas de violência são sempre corpos pretos. Essa divisão só é boa para o colonizador, para quem nos escravizou.”
Mariama participou de uma reunião com a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, além de outras autoridades federais, lideranças migrantes e integrantes da família de Mabaye após o assassinato. Segundo ela, mais do que cobrar respostas, é preciso construir soluções junto com quem está na linha de frente. “Não basta cobrar autoridades pelo ocorrido, mas discutir como evitar [novos casos]. Quem está na linha de frente somos nós [imigrantes negros], que estamos desempregados”, lamentou.
Ela também destacou a necessidade de romper com estereótipos sobre a África e reconheceu a diversidade das experiências migrantes no Brasil. “Somos um continente com 54 países. Mas, no meio de tanta diversidade, a nossa pauta é reduzida à imagem de um país. Isso é uma luta dentro da luta dos direitos humanos”, pontuou.
Governo federal vê violência racializada e reforça ações
Ana Maria Gomes Raietparvar, coordenadora-geral de Promoção dos Direitos das Pessoas Migrantes, Refugiadas e Apátridas do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, afirmou que o assassinato de Ngange Mbaye não é um caso isolado. “Vemos, um ano depois, o mesmo episódio se repetindo”, disse, citando o caso de Serigne Mourtalla Mbaye, que morreu ao cair do 6º andar após ação policial no prédio em que morava, no centro de São Paulo, em abril de 2024.
“Isso demonstra uma urgência em olhar para esse público migrante e essas interseccionalidades entre raça, nacionalidade e classe no Brasil. É um perfil que temos visto constantemente sofrendo violência, seja por parte da população, como foi caso do congolês Moïse Mugenyi Kabamgabe [assassinado em 2022, após ser torturado e agredido por quatro homens no Rio de Janeiro], seja por parte da polícia, de agentes da segurança pública”, indicou. De acordo com ela, as denúncias de violência contra migrantes são majoritariamente contra a população negra, haitianos e africanos, e indígenas, venezuelanos e bolivianos.
A representante do governo reforçou que a xenofobia, somada ao racismo estrutural, agrava a vulnerabilidade dessas populações. “Me preocupa que o discurso xenofóbico faz parte do senso comum. É um discurso que a extrema-direita abraçou com tudo; podemos ver como o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, usa imigrantes como inimigos. Não tenho dúvida de que isso possa, a qualquer momento, ser capitalizado no Brasil também. Então é urgente a discussão dessa pauta.”
Após o assassinato de Mbaye, o ministério acionou a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos e promoveu a reunião de emergência, que teve a participação de Mariama Bah, para “entender as especificidades do caso”. A ministra Macaé Evaristo “está ciente” dos problemas enfrentados pela população migrante no Brasil e “se colocou a disposição” da família de Mbaye, garantiu Raietparvar.
Apesar de o Brasil ter uma Lei de Migração considerada avançada, de 2017, a coordenadora afirmou que a aplicação das políticas públicas ainda é um desafio. Segundo ela, o governo tem apostado na participação social de lideranças migrantes e no diálogo com a sociedade civil. “Se hoje temos mais convicção do que precisa ser feito, é porque estamos ouvindo essas populações. Mas o combate à xenofobia não depende só do governo”, defendeu.
‘As mãos do prefeito estão sujas de sangue’, diz cientista político
Comentarista fixo do programa e cientista político, Joselicio Júnior responsabilizou diretamente o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), pela morte do trabalhador. Segundo ele, a ação policial foi motivada por uma política sistemática de repressão ao trabalho informal, organizada pela prefeitura da capital.
“Os policiais estavam a serviço da prefeitura, havia inclusive fiscais junto com os PM, com o objetivo de inibir o trabalho ambulante. A morte do Ngange Mbaye tem plena responsabilidade do Ricardo Nunes. As mãos dele estão sujas de sangue nesse episódio e em tantos outros abusos que estão sendo cometidos nesta cidade”, denunciou.
Joselicio também destacou que a perseguição ao trabalho de rua é uma constante histórica contra a população negra no Brasil. “Desde os séculos 17 e 18, o trabalho nas ruas é uma forma de busca por sustento e dignidade para a população negra. [A gestão de Nunes] lida com isso da pior forma possível, numa estrutura de sociedade que não garante pleno emprego para as pessoas”.