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‘O maior medo do sistema é de que um Oruam se politize’, diz rapper FBC

Ao Brasil de Fato MG, músico, conhecido como ‘Padrim’, analisa as tentativas de criminalização do funk e do rap

“Essas figuras são pessoas que representam territórios marginalizados”, destaca o rapper Fabrício Soares Teixeira, conhecido como FBC, sobre MC Poze do Rodo, Oruam e outros artistas periféricos que sofrem com tentativas de criminalização.  

Nascido e criado no bairro Asteca, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), o rapper e compositor é militante da cultura hip hop há mais de 20 anos e, ao longo de sua carreira, nunca se furtou de expressar claramente suas opiniões políticas.  

“Eu entrei no rap por conta da política, para conseguir ser um agente político melhor. Eu acredito que o caminho é a radicalização da arte”, ressalta.

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Pai de três filhos, ele é morador do Cabana do pai Tomás, favela que fica na região oeste da capital mineira, e atua como diretor criativo e musical do estúdio Xeque-Mate. O músico tem em sua carreira trabalhos importantes em parceria com grandes nomes da cena musical urbana, como Don L, Djonga, Mac Júlia e BK.

O “Padrim”, como prefere ser chamado, debateu, em entrevista ao Brasil de Fato MG, os recentes ataques à cultura nascida nas periferias, como o funk e o rap, além da importância da coletividade e do posicionamento político dos produtores de cultura. 

Confira a entrevista completa: 

Brasil de Fato MG – A discussão sobre a criminalização de manifestações culturais nascidas nas periferias tem se tornado cada vez mais presente. O último episódio que ganhou destaque foi a prisão do MC Poze do Rodo, denunciada por parte da população como “arbitrária” e “truculenta”. Como você avalia esse contexto? 

FBC – Não conheço ele pessoalmente, mas o pouco que eu sei é que ele é morador de uma comunidade, o Rodo, no Rio de Janeiro, e a música o tirou da vida do crime. Acredito que ele é honesto, em todo momento, naquilo que ele se propõe a dizer, com os relatos dele enquanto artista, MC e escritor. 

O grande lance no debate se um artista pode ou não ser preso pela arte que ele produz é, na minha opinião, que isso é uma grande cortina para distrair as pessoas do que realmente está acontecendo. Para mim, o que acontece de fato é uma briga econômica, uma luta contra o dinheiro feito na periferia, contra a ascensão do gênero funk no mundo.

Em quase todas as playlists e nas lojas de streaming, o funk é protagonista e está  sempre entre os mais ouvidos. Ou seja, é uma briga econômica. Eu acredito ainda que o agronegócio, sertanejo, esteja por trás de muitas dessas ações, injetando dinheiro ou usando sua influência de alguma forma.

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O funk e o rap sempre disseram um relato da periferia, um relato do cotidiano da favela e das comunidades, dos lugares afastados do centro. Inclusive, em outras épocas, o “funk proibidão” foi muito mais explícito, e existem músicas atuais que são muito mais explícitas, com um discurso mais combativo, confrontador e agressivo contra o sistema e a estrutura racista e machista.

Quem está dentro da música entende que é uma briga por espaço. Criminalizar colabora com a estrutura, porque vai enfraquecendo e fazendo com que os MCs não consigam mais, nos próximos trabalhos, produzir e alcançar aqueles números de antes. Isso vai minando aos poucos a imagem, descredibilizando o artista, colocando o artista no lugar de algoz, de vilão. 

Defendem que a influência daquele artista para aquela comunidade é muito nociva, porque o que ele diz nas letras é capaz de “induzir”, de “influenciar” uma criança a “fumar maconha ou a roubar”, por exemplo. São essas as coisas que eles usam sempre, mas a guerra é econômica. É pelo espaço e pelo dinheiro. 

Ao mesmo tempo, eu acho que é inútil. Nada vai conter o funk, nada vai fazer com que o funk deixe de ser o maior representante no mundo do que é o Brasil na música e na produção de cultura.

Qual é a importância de figuras como Poze do Rodo, Oruam e outros artistas para as suas comunidades? 

Essas figuras são anti-heróis, pessoas que representam territórios marginalizados onde a maioria está em uma situação muito vulnerável, seja por conta do crime, seja por conta de como o Estado age dentro daqueles territórios. 

A maioria das pessoas está no fogo cruzado entre o crime e o Estado. Esses são os territórios e são essas pessoas que, agora, estão na sua tela. As crianças estão vendo elas passando. O poder de mobilização que essas pessoas têm hoje causa medo em alguns grupos políticos.

E, para esses grupos, qual é a forma de conter esses ícones que hoje são o “estandarte” da favela? É descredibilizar, marginalizar, punir com ações na Justiça, para que a opinião popular seja moldada de forma a entender que essas pessoas estão fazendo mal. 

Mas é um mal que a gente não vê, que existe só quando você está na internet. Quando você sai na rua, esse mal não existe. Qual é o problema que o Oruam está causando para o cara que está trabalhando de garçom ou para a pessoa que está varrendo a rua? 

Eu acho que tem demandas muito mais sérias dentro das cidades,  nas periferias, nas margens dos grandes centros. Pautas que a gente devia estar discutindo, ao invés de qual é a influência de um MC que pinta o cabelo de vermelho e mora no Rio de Janeiro. É um engodo político, uma grande cortina, para tirar a gente da mobilização que deveríamos estar fazendo agora.

E eles estão atacando no lugar certo. Hoje o Oruam é o mais ouvido do meu filho, do amigo do meu filho, da amiga do meu filho. Não é mais o pessoal que representa o âmago do agronegócio e da indústria cervejeira brasileira. Porque é isso, falar de cerveja, que é a maior causadora de acidentes e de mortes nas estradas, ninguém quer ir contra.

A pessoa bebe o que quer, fuma o que quer, usa o que quer. Mas pera aí. É uma falsa simetria que existe entre um artista que veio de um contexto e outro artista que representa um contexto que já é consagrado, está na mídia, é promovido, já existem leis que asseguram aquilo. E a música sertaneja é isso. O funk não. 

O funk vem como um estilo negro, de periferia, de pessoas que, nos anos 90, viviam o contexto de um dos momentos mais críticos de violência urbana no país. Por isso, o rap e o funk são o que são.

A luta deles é tornar o artista periférico um ser desprezível aos olhos da sociedade, perseguindo-o de todas as formas. Isso, ao meu ver, é um movimento inútil, já que os próprios artistas internacionais, que promovem e entendem a música atual, dizem que o gênero funk é um gênero musical sim. 

De que forma essas expressões artísticas mobilizam a periferia? 

A importância, ao meu ver, é cultural. Já sabemos que as comunidades precisam de cultura, de espaços comuns de lazer, de entretenimento, de diversão, onde as pessoas podem se organizar coletivamente. É criar uma sensação de bem-estar social a partir da cultura. A cultura também é direito. 

A cultura é um elemento que faz com que o bem-estar social, ainda mais em lugares assim, seja maior, seja realmente profundo e que haja, não só na rua, mas dentro das casas, na escola, e em todos os âmbitos que a comunidade tem.

Ao meu ver, a maior força que eclode desse movimento, da reunião das pessoas para, por exemplo, comemorar uma decisão judicial, o alvará de alguém, é política. É a força política que aquilo gera para a comunidade. Dali, são criados os novos líderes.

O funk se tornou uma manifestação cultural exportada do Brasil para o restante do mundo, grandes artistas, como Anitta e Ludmilla, são reconhecidas e mobilizam públicos enormes. Existem diferenças entre artistas reconhecidos midiaticamente e os que estão sendo discriminados?

A Ludmila, por exemplo, conversa muito bem com a favela, com o dialeto da favela e com o que está acontecendo aqui. A Anitta, hoje, atua na música internacionalmente, não é o funk que acontece na periferia. Da mesma forma, Ludmila não é o funk que acontece no Cabana, na Serra, no Helipa ou dentro do Complexo da Maré. 

Todas têm um mérito, pois vieram de um lugar, da periferia, da margem. Quando surgiram, o funk já não era embrionário, era realidade, mas ainda estava caminhando. Elas fazem parte desse processo e representam a ascensão do funk.  Elas viveram o “furacão”, as rodas de funk, aquela coisa que estava virando uma febre no Brasil.

O funk começou, depois dos anos 2000, a virar aquela febre. Em 2010, se estabeleceu a cultura e começaram a surgir subgêneros dentro do funk: o funk de BH, o funk de SP, o funk da baixada, o funk de Goiás, etc.

Mas existe um jeito de fazer o funk que é utilizado por essas pessoas que explodem e existe um jeito dos MCs que estão sendo atacados. O favelado sabe quem está no movimento. O favelado sabe quem foi do movimento. O favelado, quando ouve, sabe e entende a mensagem, e são essas pessoas que traduzem isso: o MC Frank, o MC Ticão,  o Poze, etc.

Essas pessoas vêm de lá, têm essa carga cultural e histórica,  essa vivência. Então, falar que “todo brasileiro é burro”, é mentira. Falta interpretação de texto, falta, mas, quando somos nós falando para nós mesmos, a gente se entende. 

O Poze e o Oruam são fruto dessa realidade. “Ah, mas é filho de traficante”. Vocês querem o quê? Vocês queriam o quê? Vocês não queriam Brasil? Quando vem um moleque do fundo de um lugar horroroso, onde a estatística prova que ele é um milagre, um sobrevivente, e traduz a realidade brasileira, é mais fácil destruir. 

Espero que isso domine as rádios, que “os menor”  queiram ser o Oruam, queiram gastar em real e não em dólar. 

Tem também o controle hegemônico estadunidense, do imperialismo americano, que está na indústria fonográfica, na indústria do cinema e em todas as indústrias em que a arte foi capitalizada. O buraco é muito mais fundo. Essa guerra é uma guerra econômica. 

Você se posiciona abertamente sobre temas políticos,  como o genocídio do povo palestino e a tentaiva de golpe de Estado do 8 de janeiro. Como você se vê nesse debate sobre a marginalização da cultura periférica ? 

Sobre a marginalização da cultura, eu sou belo-horizontino, e disso eu entendo. Faço parte dos movimentos sociais que ocuparam a cidade desde 2007. Eu fiz parte de todos aqueles movimentos, junto com aquela efervescência que aconteceu no baixo centro. 

Então, eu posso te dizer que, para as elites, quanto menos cultura para as pessoas que se mobilizam e criam coletivos para mudar o contexto da sociedade, melhor. Eles pensam que cultura é só balé, museu, teatro, etc. Que ocupação, pagode, samba, funk não é cultura.  Eu estou acostumado com isso.

O que eu faço é estar aqui, trabalhando, e sempre trazendo as pessoas em quem eu acredito, que estão em lugares vulneráveis, em situações em que, se não tiver um apadrinhamento ou um incentivo, financeiro ou um lugar para a pessoa desenvolver o seu trabalho, não acontece.

Eu acredito que eu criei uma forma de multiplicar e potencializar essas pessoas. Vamos ver quem está chegando e potencializar esse artista, essa artista. 

Sobre a coisa da política, eu entrei no rap por conta da política. Quando eu tinha os meus 10 anos de idade, eu tocava bateria na igreja. Com meus 13 anos, fui me envolvendo em movimentos sociais dentro da escola, lutando, por exemplo, pela questão da carteirinha estudantil, do grêmio escolar, essas coisas.

Eu já ouvia rap, mas foi a partir desse momento que eu comecei a consumir política, livros, discursos políticos, temas ideológicos sobre o que é capitalismo,  comunismo e socialismo. Aí eu falei: mano, o rap é o que representa esse território, todos os anseios, todas essas lutas, tudo isso que a gente está aqui discutindo. Tudo isso que a gente quer mudar, quer transformar, o rap está expondo e tratando disso.

Eu já entrei no rap para conseguir ser um agente político melhor. E, assim, eu continuo, consumindo a cultura produzida pelos nossos, os filmes, os livros, os debates, me politizando. E, cada vez mais, a gente vai se radicalizando. 

Eu acredito que o caminho é esse, a radicalização da arte, para que realmente seja um fator que motive as pessoas a pelo menos ser empático, querer pensar. 

No último sábado, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro entrou em uma festa junina na comunidade Santo Amaro e matou Herus Guimarães Mendes da Conceição. O MC Oruam estava presente na ocasião e prestou socorro à família do jovem. Mais tarde, nas redes sociais, ele indagou sobre como se organizar politicamente e foi respondido por diversas figuras da esquerda. Qual é a importância dessa aproximação? 

E eu acho que o maior medo do sistema e das pessoas que nos oprimem é que essas comunidades se politizem. O maior medo de qualquer agente de extrema direita é que um Oruam se politize, crie mobilização, comece a agir e criar coletivamente na sua quebrada e com outras quebradas. Esse é o maior medo do dinheiro organizado, do dinheiro antigo, que movimenta a estrutura, que faz ela continuar se comportando assim.

A mobilização que existiu nessas últimas três semanas, para nós que temos dentro da arte uma consciência mais política, foi um barato. Foi bacana demais ver Erika Hilton (Psol) interagindo com o Oruam. 

Grupos de extrema direita criaram fakes, deep fakes, usando aqueles mesmos métodos covardes de coerção. Para mim, o que a Erika Hilton fez no Twitter e o que que vários criadores de conteúdo fizeram no Instagram é um alerta para não deixarmos passar batido a oportunidade de nos organizarmos. 

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