Com a aproximação do dia dos pais, conversamos com Luiz Rena, pedagogo e mestre em psicologia social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre os desafios que rondam a paternidade e a construção de uma nova masculinidade.
Ele é referência técnica da Secretaria Municipal de Educação de Contagem para as questões de mediação de conflitos e prevenção de violência e fundador do projeto Fala Comigo, um espaço de diálogo entre homens para tratar questões de natureza afetiva em relacionamentos diversos e pensar criticamente a construção da masculinidade.
“Todos nós homens elegemos modelos de masculinidade ao longo da vida, precisamos garantir à garotada, sobretudo aos meninos, que eles façam a crítica: que tipo de homem é esse que se apresenta diante de mim como um modelo? Que tipo de homem eu estou sendo? Que projeto projeto de masculinidade estou bancando e a que custo? Porque tem um custo, esse projeto de masculinidade hegemônica é adoecedor”, pontuou Rena.
Falamos também de machismo, papeis de gênero e a demanda pela implementação da licença-paternidade.
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Brasil de Fato MG: Como se deu o desenvolvimento e atuação do Fala Comigo? Como funcionam os encontros?
Luiz Rena: Tudo começou quando assisti o documentário que se chama O Silêncio dos Homens, quem ainda não viu, sugiro que veja. É um documentário que socializa o resultado de uma pesquisa imensa feita no Brasil, com, se não me engano 40 mil homens, ou seja, bastante abrangente. Eu assisti o filme e sugeri que dois ex-alunos, muito amigos meus, assistissem também. A partir disso, nos perguntamos: onde, em Belo Horizonte, encontramos algo parecido com isso? E naquele momento, na época, não conseguimos detectar.
Decidimos começar alguma coisa nessa linha, chamamos um primeiro grupo para assistir o documentário, presencialmente em Contagem. A discussão foi muito produtiva e qualificada, a partir disso, decidimos chamar outro grupo. Quando estávamos preparando o terceiro encontro presencial, veio a determinação do isolamento sanitário, por conta da pandemia. Relutamos bastante, mas acabamos levando o projeto para o mundo virtual.
Foi muito impressionante, no primeiro ano, sustentamos esse projeto com encontros semanais, aos sábados à tarde. Depois, passamos a nos encontrar quinzenalmente. Muitos desses encontros foram a partir de filmes, combinávamos com a turma para assistir a um determinado filme e debater, tratando, de alguma forma, alguma dimensão do masculino. Assistimos, por exemplo, Meu mundo em cor de rosa, Her, Lavoura arcaica, entre outros.
Assumir a sua condição de pai que cuida é uma experiência que o humaniza
Montamos uma playlist de músicas que os homens apontaram como músicas que os fizeram pensar, de alguma maneira, a sua própria masculinidade. Fizemos algumas dinâmicas, mesmo que virtualmente, trabalhando com desenho, palavras e imagens. Chegou um momento em que o projeto começou a esvaziar, sobretudo depois que a pandemia terminou, depois que voltamos para o mundo real. Não criamos um projeto no intuito de durar para sempre, sabíamos que nesse modelo, com essa metodologia, ia se esvaziar eventualmente.
No final de 2021, eu fui atender a uma demanda de indicar ex-alunos que pudessem trabalhar como psicólogos na Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC), que estava se instalando em Betim. Quando fizemos a primeira experiência eram 80 homens, hoje a APAC tem 200, sua capacidade máxima.
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Uma vez por semana, fui para dentro da APAC, partilhar com eles a técnica do tricô, e enquanto a gente tricotava, falava também das questões que tinham a ver com o jeito de cada um ser homem. Fui chamado para trabalhar em Contagem, não dei conta de compatibilizar, e suspendi um tempo. Retornei o trabalho no início do ano, agora com um ex-aluno me acompanhando nessa experiência.
Frequentemente, quando se aproxima o dia dos pais, vemos o noticiário atrelando, de alguma maneira, o dia dos pais às discussões sobre masculinidade. Por que é importante discutirmos masculinidade, quando se fala sobre a paternidade, especialmente no Brasil?
Importantíssimo, veja bem, eu acho que é fundamental que as pessoas façam uma distinção. Paternidade é uma experiência estritamente biológica, diria até que viver a paternidade é fácil. Por decisão ou por acaso, esse homem oferece a sua parte no processo de fertilização, o espermatozoide, e a mulher oferta o óvulo.
Ou seja, a paternidade se realiza, quando homens e mulheres, cada um dá sua contribuição, para gerar uma nova vida. O que pode ser até uma experiência com a participação de um terceiro, como a fertilização in vitro, a paternidade que é buscada via suporte tecnológico da medicina. Paternidade é reprodução, é gerar uma nova vida.
É preciso passar da paternidade para a paternagem, usando uma expressão pouco comum, dizendo daquele cidadão, do sexo masculino, que contribuiu e participou da geração de uma nova vida e que não lhe basta a paternidade, ele quer também participar do cuidado. Então, ele está se permitindo viver a paternagem. Pensar no dia dos pais, é pensar nessa experiência, de homens que se entregam a vivência de cuidar. Compartilhar do cuidado e às vezes até cuidar sozinho.
É preciso passar da paternidade para a paternagem, a participação no cuidado
Historicamente, a tarefa de cuidar foi dada e reconhecida como um atributo da mulher. Isso foi colocado socialmente, pactuando que cuidar é uma tarefa feminina. Por isso, durante séculos, só as mulheres ocupavam tarefas como professora na educação primária e, só a partir da quinta série, é que você vai ter a presença masculina, a educação infantil é o universo só das mulheres. E muitas outras práticas profissionais eram identificadas com essa característica, de ser coisa do feminino.
Então, o pai assumir esse lugar de quem cuida ou lutar por esse espaço é uma coisa rara de acontecer. E isso tem muito a ver com a concepção de masculinidade hegemônica, ou seja, a ideia de masculino que predomina na sociedade que vivemos, sobretudo essa sociedade que é judaico-cristã-branca. Esse movimento, de não ser só pai biológico e assumir a sua condição de pai que cuida, pai do ponto de vista sociológico, afetivo e psicológico, é abraçar essa experiência, como uma experiência que o humaniza.
Os homens que se recusam a ocupar esse lugar de pai afetivo, psicológico e sociológico, estão perdendo uma enorme oportunidade de aprofundar sua própria humanidade. Toda vez que cuidamos de alguém, qualquer alguém, mesmo que não seja filho, que vivemos a experiência do cuidar, nos humanizamos. Quando cuidamos dos filhos ou das filhas, garantimos esse direito. Hoje trabalho com essa ideia de que cuidar de filho é um direito do pai também.
Nós estamos chegando no Dia dos Pais, é hora de pensar: que tipo de pai eu sou? Esse tipo de pai, que eu sou, revela o jeito como eu assumi a minha condição de um corpo sexuado e masculino. O que eu faço com esse corpo, que é habitado pela minha alma, pela minha subjetividade? O que que eu faço com essa realidade, de ser sexuado masculino, que me faz ser reconhecido pela família, pela sociedade, pela comunidade como um homem? Ao longo da vida, cada um de nós, vai construindo um jeito muito singular de viver esse fato tão importante.
Os homens deviam aproveitar o dia dos pais para se perguntar: o pai que eu estou sendo é o pai que eu sempre quis ser? E é claro que o nosso jeito de ser pai vai mudando de acordo com a fase, o momento do desenvolvimento do filho e a fase do nosso desenvolvimento também. O envelhecimento nos coloca uma série de limites e situações para se reinventar enquanto o pai idoso, por exemplo.
Você pôde observar mudanças concretas na maneira como os homens que participaram do projeto Fala Comigo lidaram com a masculinidade e a paternidade?
O projeto era ofertado através do Facebook e do Instagram para o mundo, ou seja, tinham homens do sul do Brasil, do interior do Pará, ou que viviam no Chile e na Alemanha. Alguns vinham e permaneciam meses conosco, outros vinham uma vez e voltavam depois de dois meses, então, nós não tínhamos muitos elementos para aferir e dar uma resposta para essa pergunta que é importantíssima, de uma forma mais segura e consolidada. Mas vou contar alguns relatos, coisas que aconteceram que eu acho muito interessantes.
Um rapaz contou, em um dos nossos encontros, como foi redescobrir o pai dele, vivendo juntos, dentro de um apartamento, durante a pandemia e isolados. Como foi um desafio ter que ficar 24 horas por dia com aquela pessoa, que você conhecia dentro de um ritmo e de uma lógica de convivência, que mudou completamente com o isolamento. Ele redescobriu um outro pai.
Teve um outro companheiro, se não me engano de Divinópolis, que contou sua história. Ter um bebê e quase morar dentro de um hospital com essa criança por longos meses. A criança nasceu com um problema de saúde e os dois tiveram que se virar para acompanhar, por um tempo longuíssimo de internação hospitalar, até vir o óbito dessa criança, que não sobreviveu.
Pais que cuidavam de crianças sozinhos também apareceram muitos, no desejo de ter com quem conversar. Alguns encontros foram dedicados a pensar juntos a experiência da paternidade. Tivemos casos de pais de crianças com autismo e outros transtornos, falando de como é o processo de descobrir a especificidade daquela criança, de trabalhar a própria cabeça, para entender o que está acontecendo com o filho e para assumir uma posição de compartilhar esse cuidado com a parceira.
O pai que eu estou sendo é o pai que eu sempre quis ser?
Tivemos também um encontro muito interessante perguntando: os homens abortam? Foi riquíssimo. Debatemos como o aborto é também simbólico, o meu corpo não aborta, mas dependendo da minha atitude e da minha postura diante daquela mulher grávida, que leva um filho meu na barriga, eu aborto tanto quanto ela, dependendo da forma como eu lido com essa situação. Os homens também praticam o aborto e muitas vezes abortam seus filhos vivos, rejeitam, recusam, não reconhecem a paternidade.
Os homens que chegavam para participar do projeto, já eram um perfil de homens diferentes. Chegavam já abertos a compartilhar sua experiência, a falar dos seus sentimentos, que é uma coisa rara entre nós homens. A maioria dos homens não gosta de falar sobre si mesmo, não gosta de dividir o que está sentindo. Então chegava no projeto o homem já com um perfil bastante interessante. Os encontros ocorreram num clima de absoluto respeito, de muito cuidado um com o outro, eu diria até de uma atitude carinhosa com as histórias que os colegas traziam.
Na sua avaliação, percebendo tanto as evoluções quanto os atrasos que temos em relação ao ser pai no Brasil, como melhorar a maneira como os homens são pais hoje?
Primeira coisa, nós precisamos trabalhar com os meninos, estou falando de meninos de 8, 9, 10 anos. Eu visito muitas escolas, analiso muitas situações de conflito e violência e há muitas situações cuja origem do problema está no modelo de masculinidade que aquele garoto está tendo em casa.
Todos nós homens elegemos modelos de masculinidade ao longo da vida. Meu pai foi até um determinado momento da minha vida o meu modelo, depois eu fiz uma crítica desse modelo e entraram outros no lugar dele. Nós precisamos garantir à garotada, sobretudo aos meninos, que eles façam a crítica: que tipo de homem é esse que se apresenta diante de mim como um modelo?
A segunda coisa é garantir espaços de escuta para estes homens adultos. No projeto Fala Comigo, tínhamos desde meninos de 17 anos até homens de 70 e observamos uma coisa muito interessante: todos queriam muito falar. Quando eu vou para dentro da APAC, empresto o meu ouvido para escutá-los contar suas histórias. Eles fazem peças de tricô, para dar para suas filhas, namoradas, mães e acabamos fazendo esse trabalho de buscar entender como é a relação com esse mundo feminino que nos cerca. Um espaço de escuta para os homens é uma coisa muito importante.
Os homens também praticam o aborto e muitas vezes abortam seus filhos vivos
Terceira coisa importante é no campo institucional, jurídico. É um absurdo que ainda hoje, em 2025, a licença paternidade seja de apenas uma semana. Isso é um absurdo. O movimento sindical, mesmo o movimento das mulheres e pessoas que são comprometidas com as políticas públicas, poderiam engrossar a luta para a revisão dessa legislação que, por anos, assegura aos homens um tempo muito curto de contato com a cria, logo depois que ela nasce.
Um argumento utilizado é de que esse vínculo inicial é muito com a mãe, o que é verdade. Mas a presença do pai, inclusive para saúde mental e física daquela mulher que acabou de parir, faz toda diferença. E eu tenho certeza absoluta, a partir da minha própria experiência, que a qualidade do vínculo, que eu pai vou estabelecer com aquela criança, com um tempo maior de aproximação nos primeiros dias de vida, é outra. Devemos trabalhar muito essa possibilidade.
E a quarta e última, é uma questão educacional, porque significa uma mudança de cultura, mesmo no universo feminino. Muitas vezes, nós homens somos excluídos da prática do cuidado. É urgente um trabalho educacional, com o conjunto da população, evidentemente, também com os homens, para firmar que o homem pode aprender a cuidar.
Ele foi cuidado um dia, foi objeto do cuidado de uma mulher. Então, vamos eliminar o preconceito, acabar com esse temor e deixar que os homens também participem dessa arena do cuidado. Sobretudo mulheres de uma determinada geração, mas há uma tendência na sociedade em geral de reafirmar que homem não dá conta de cuidar. E a gente sabe que dá.
Isso passa também por uma evolução das questões da masculinidade e do comportamento dos próprios homens? É necessária uma reestruturação do que é ser homem?
Claro, para que, inclusive, a gente desconstrua essa outra ideia, do que é o homem em uma prática de cuidado, sem dúvida. Nessa sociedade fortemente influenciada, desde sua origem, pela cultura ibérica, temos uma cultura que é muito machista, muito patriarcal e muito fálica. Traduzindo: o que importa é o pênis.
Aquele corpo que traz um pênis é um homem e portanto, esse homem tem uma pauta de comportamento para cumprir. Tem um jeito de funcionar que ele precisa reproduzir, como foi o pai, o avô, o bisavô dele. Essa bagagem não é leve, é uma bagagem muito pesada e muitos homens precisam de ajuda para tira-la das costas. Abrir essa mochila, ver o que que tem ali dentro que não vale mais a pena manter e que precisa ser jogado fora.
Esse é um trabalho muito bonito feito em muitos lugares do Brasil, como os grupos reflexivos de homens que foram violentos com suas mulheres, foram condenados e estão cumprindo ou que cumpriram pena. É mostrar para este homem: você pode mudar de rumo, esse jeito de viver como homem não é o único, você pode se reinventar.
O tempo todo, a gente tem que se perguntar: que tipo de homem eu estou sendo? Que projeto de masculinidade eu estou bancando e a que custo? Porque tem custo, esse projeto de masculinidade hegemônica é adoecedor, para o próprio homem e quem está em volta dele.
Voltando à questão da licença paternidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Congresso volte a debater a questão. Qual a importância desta pauta?
Veja bem, temos que considerar que o Brasil de hoje está, cada vez mais, configurado em famílias muito pequenas. O cuidado de uma criança, ele demanda muito. Sobretudo ali no início, nos primeiros dias, no primeiro e segundo mês, a criança demanda muito da mãe, sobretudo se ela está amamentando. E a mãe precisa de momentos de descanso, tem que ter alguém que compartilhe esse cuidado da criança, para que essa mulher também possa descansar e se alimentar adequadamente. Conquistar uma ampliação da licença paternidade cria mais condições para que isso aconteça.
Eu já escutei o seguinte: “Ah, vai ampliar a licença e o homem vai sair de casa de manhã cedo e voltar à noite, ele vai curtir a vida dele”. Pode acontecer isso, claro, mas não podemos trabalhar com as exceções. É preciso trabalhar com a ideia de que há uma maioria de homens que querem acompanhar mais de perto o primeiro mês do desenvolvimento da sua cria, do seu bebê. Um efeito positivo da ampliação da licença paternidade é esse suporte para a mãe, que impacta na saúde da mãe e da criança.
É um absurdo que ainda hoje a licença paternidade seja de apenas uma semana
A outra vantagem muito positiva é que esse homem, ao se expor nessa interação com o bebê – aprender a dar o banho, aprender a trocar roupa, aprender a fazer a limpeza – esse homem vai se permitir uma vivência que só essa relação com a criança pequena nos permite. Ele não vai encontrar isso em nenhum outro lugar. Contribui, como eu já falei, para esse processo de aprofundamento da humanidade dos homens.
Isso pode ter um reflexo na relação dos homens com as mulheres, com o mundo e com eles mesmos. E eu digo que a cada criança que nasce, um outro pai aparece. Eu tive três, e o pai da Maria Luiza, atuou de um jeito, viveu essa experiência de um jeito. O pai da Laura foi outro e o pai da Júlia outro. A ampliação da licença paternidade vai fazer o reconhecimento de um direito da maior importância e que vai ter efeitos muito relevantes na relação do casal e na qualidade do ambiente familiar, todo mundo vai crescer junto.
Eu acredito que vamos encontrar muitas barreiras no mercado e nessa representação social do que é ser pai, do que é ser mãe, nessa ideia da maioria das pessoas de que o homem não dá conta de cuidar. Mas eu acho que é preciso dar o primeiro passo. Tem países que têm seis meses de licença paternidade, tem países que o casal decide quem vai ter a primeira licença e quem vai ter a segunda.
Tem muitos exemplos pelo mundo afora, dos efeitos positivos dessa decisão. Então é ficar na torcida e fazer muita pressão em cima do Congresso, para que escolha a coisa certa, que é garantir que os pais possam viver essa experiência.