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‘A não punição após a ditadura permitiu a tentativa de golpe do 8 de janeiro’, diz Frei Betto

Entrevista com Frei Betto sobre o julgamento de Jair Bolsonaro e dos outros sete réus por tentativa de golpe

O julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), de Jair Bolsonaro (PL) e dos outros sete réus por tentativa de golpe de Estado começou nesta semana e reabriu o debate sobre a importância da punição de golpistas para a garantia da democracia no Brasil. 

O frade dominicano e teólogo Frei Betto destaca que foi justamente a impunidade aos assassinos e torturadores da ditadura militar brasileira o que possibilitou que o intento golpista de 8 de janeiro de 2023 tenha acontecido. 

“O fato de o Brasil não ter punido com rigor os assassinos e torturadores da ditadura permitiu que houvesse essa tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023. Não se separou o joio do trigo. É a primeira vez na nossa história que militares respondem por seus crimes”, afirma, ao Visões Populares.

Autor de mais de 80 livros, Frei Betto participou da resistência ao regime militar, coordenou a mobilização social do programa Fome Zero e recebeu vários prêmios por sua atuação em prol dos direitos humanos. Atualmente, ele é assessor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), no programa voltado ao combate à fome em Cuba.

O teólogo também discute sobre as mobilizações populares do 7 de setembro e as tentativas de interferência dos Estados Unidos na América Latina.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato MG –  Pela primeira vez na história do Brasil, está sendo julgada uma tentativa de romper com a ordem democrática. Como você enxerga esse processo?

Frei Betto – Eu fico muito satisfeito que esteja ocorrendo esse julgamento. Eu participei da resistência à ditadura militar, fui vítima da ditadura, fui torturado. Depois, outros frades dominicanos também foram presos e torturados, assim como vários companheiros e companheiras de luta. 

O Frei Tito de Alencar Lima veio a morrer, pelo excesso de torturas que sofreu na prisão. Morreu aos 28 anos, em 1974. E nunca os torturadores e assassinos foram responsabilizados. Eles trucidaram pessoas, como o deputado Rubens Paiva, que todos viram no filme Ainda Estou Aqui, e tantos outros que “desapareceram”, mas na verdade foram assassinados e as Forças Armadas não entregaram seus corpos.

O governo ditatorial do presidente Figueiredo decretou uma anistia recíproca, que é uma aberração jurídica. Ninguém pode ser anistiado se não foi sequer investigado, julgado e condenado. No entanto, isso aconteceu no Brasil. Felizmente, não aconteceu nas ditaduras similares do Uruguai, da Argentina e do Chile, países em que os torturadores foram julgados, levados aos tribunais, condenados a penas, inclusive, muito altas. Na Argentina, por exemplo, vários generais pegaram prisão perpétua.

O fato de o Brasil não ter punido com rigor os assassinos e torturadores da ditadura permitiu que houvesse essa tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Então, é a primeira vez na nossa história que militares respondem por seus crimes. É a primeira vez que julgamos uma tentativa, felizmente fracassada, de golpe de Estado. E, portanto, sabemos que a impunidade favorece a imunidade, ou seja, quando uma pessoa não é punida, ela se sente à vontade para voltar a praticar novos crimes. Por isso que a ação da justiça é fundamental.

Eu espero que esses filhos e viúvas da ditadura sejam severamente punidos

Eu espero que esses filhos e viúvas da ditadura sejam severamente punidos, para fortalecer a democracia brasileira. E gostaria muito que esse julgamento tivesse repercussão na Escola Militar de Agulhas Negras e nas escolas de formação dos oficiais da Marinha e da Aeronáutica, para que seja completamente extirpado o vírus do golpismo entre os militares brasileiros.As Forças Armadas estão submissas ao poder civil e existem para cumprir um dever definido pela Constituição e não para tutelar a República ou o povo brasileiro. 

Então, a minha expectativa é que haja uma rigorosa punição a todo esse pessoal que tramou contra a nossa frágil democracia. Levamos muitos anos, a um custo muito alto, para recuperar a democracia que foi cancelada em 1964. É inadmissível que ainda haja setores da população brasileira, principalmente das Forças Armadas, planejando derrubar o Estado Democrático de Direito. É muito importante que esse julgamento seja exemplar.

Grande parte da tensão envolvida no julgamento do STF está ligada aos recentes ataques do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, à soberania brasileira. Na sua avaliação, é possível que Trump parta para ações mais drásticas?

Não, eu descarto essa possibilidade, porque não há nenhuma conjuntura internacional favorável a uma intervenção militar dos Estados Unidos no Brasil. Na verdade, o Trump tentou, e serviu de exemplo ao Bolsonaro, que o poder não fosse democraticamente transferido. 

Mas não conseguiu, as instituições dos Estados Unidos reagiram com vigor e ele não se conforma. E digo mais, como ele é um homem com vocações ditatoriais, certamente tentará alcançar um terceiro mandato, o que a Constituição dos Estados Unidos não permite. Não vai ser fácil tirá-lo do poder.

Toda essa ofensiva do Trump contra o Brasil, como o tarifaço, na minha avaliação, não tem a ver diretamente com a questão da tentativa de golpe de Bolsonaro e seus aliados. Tem a ver com a postura soberana do Brasil, representada pelo presidente Lula. Os EUA conseguem que toda a União Europeia, o conjunto dos países democráticos da Europa, dobrem a espinha diante dele. Humilham um presidente como Zelensky, da Ucrânia, e ele continua comendo na mão do Trump. Mas não conseguem dobrar o companheiro Lula.

E o companheiro Lula representa mais do que a pessoa dele, representa o BRICS, o Sul global e uma crítica contundente à política genocida do atual governo do Estado de Israel, que diga-se de passagem, não é um estado democrático. Qualquer país democrático tem uma constituição, mesmo os pais ditatoriais costumam ter constituições, Israel não tem. Israel é um país teocrático que baseia-se num livro religioso, a Torá. Isso é inadmissível em pleno século 21.

Então, é a atitude soberana do companheiro Lula que tanto irrita Trump. O fato de o Lula não ir comer na mão dele, não se colocar de joelhos diante do Tio Sam, do gigante americano, o irrita profundamente. Certamente ele vai endurecer as sanções contra o Brasil, mas eu acho muito bom que, cada vez menos, os brasileiros mantenham o sonho de que os EUA são o paraíso na terra, de que é melhor viver lá do que viver aqui.

E acho muito bom também que uma parcela significativa dessa mercadoria que ia para os lá fique no nosso mercado interno. Lá a carne já encareceu, por causa do tarifaço, aqui ela tende a se baratear. Ou seja, se tornará mais acessível ao bolso do brasileiro, que aliás, tem tido um aumento significativo da sua renda e uma redução do desemprego, graças ao governo Lula.

Neste momento os EUA tem estacionada próxima a Venezuela uma frota de guerra com diversas embarcações. Como você avalia esse conflito e a postura do governo brasileiro frente a esse ataque?

Primeiro, eu acho que o governo brasileiro tem que reagir e tem reagido contra essa intromissão do governo dos Estados Unidos, nos países da América Latina. Em qualquer país, na realidade. Não podemos admitir que os EUA sejam a polícia do mundo, que eles decidam quem merece ou não ser atacado, perseguido, encarcerado, anulado, condenado e assassinado.

Embora saibamos que a história dos Estados Unidos é de um país que encarna o terrorismo. Quando vou às escolas de ensino médio e pergunto à garotada qual foi o maior atentado terrorista acontecido na história, invariavelmente eles dizem que foi a derrubada das Torres Gêmeas em Nova Iorque. E eu os corrijo dizendo: vocês estão equivocados, ali morreram pouco mais de 3 mil pessoas.

Os dois maiores atentados terroristas da história da humanidade foram as bombas atômicas jogadas, pelos EUA, sobre as populações, inocentes e pacíficas, de Hiroshima e Nagasaki ao fim da Segunda Grande Guerra. Não há nada comparável na história da humanidade. Talvez só seja comparável ao genocídio promovido por Hitler, durante a Segunda Guerra, na tentativa de implantar o nazismo nos países europeus e que, infelizmente, hoje é imitado por Netanyahu, o primeiro ministro de Israel.

É muito importante elucidar as pessoas sobre essa vocação terrorista dos governos estadunidenses, não do povo, mas dos governos. Que sempre utilizam o dinheiro para assombrar a mente dos eleitores que equivocados, iludidos, enganados, por essa grande capacidade que a mídia tem de fazer a cabeça das pessoas, acaba votando em figuras execráveis como Trump.

Mas, voltando à questão da Venezuela, nós temos que ser muito solidários ao povo venezuelano e ao governo Maduro. Ainda que um governo, em qualquer ponto do planeta, estivesse envolvido com algum tipo de crime, como tráfico de drogas, isso caberia à justiça do seu próprio país e não um país estrangeiro querer intervir naquela pátria para, supostamente, dar uma lição de justiça ou de moral.

A pergunta que os Estados Unidos deveriam estar se fazendo é: por que eles são o maior mercado de consumo de drogas do planeta? Por que tantos estadunidenses se tornam viciados em drogas, dependentes químicos? Essa é a questão que está em jogo.

No final de Julho, Trump assinou um Memorando Presidencial de Segurança Nacional que reforça a política de hostilidade de Washington em relação a Cuba. Há décadas o povo cubano enfrenta este tipo de medida.  Que lições de resistência ao imperialismo os cubanos podem ensinar ao restante da América Latina?

O programa Mais Médicos fez um grande bem ao povo brasileiro. Eu lamento que o governo não tenha renovado esse contrato com os cubanos, para trazê-los. Muitas localidades remotas do nosso país, empobrecidas,  ainda carecem de médicos que deem a eles atenção gratuita, profissional e competente. 

Infelizmente, a maioria dos médicos brasileiros quer estar nas grandes cidades e transformar a profissão num meio de enriquecimento e, principalmente, sem sensibilidade aos setores mais empobrecidos da população.

Temos que ser muito solidários ao povo venezuelano

Ora, é muito importante que tenhamos presente que Cuba é um exemplo, do ponto de vista de solidariedade internacional. Como Cuba tem excedente de médicos, pode se dar ao luxo de enviá-los em missões a vários países, principalmente países de população empobrecida. Mas mesmo na Itália, que é um país desenvolvido, os médicos cubanos atuaram, quando houve a pandemia. Será que o Trump também vai querer punir a Itália por acolher médicos cubanos?

E, por outro lado, nós temos que respeitar a soberania dos países. Cuba é um país soberano, mas que vive sob as botas dos Estados Unidos, devido ao criminoso e genocida bloqueio que dura mais de seis décadas. 

Esse bloqueio penaliza duramente o povo cubano, que é um povo resiliente, um povo heróico. Um povo que enfrentou a tentativa de invasão da Baía dos Porcos, em 1961, e ganhou, um povo que enfrentou o período do desaparecimento da União Soviética , em 1990, suportou muitas dificuldades, como atualmente suporta.

Um povo ao qual os países desenvolvidos se negaram a remeter vacinas de covid e ainda sim os cubanos foram capazes de criar cinco vacinas. É o único país pobre do mundo que conseguiu produzir cinco vacinas. Então, essa resiliência me dá muita esperança de que o povo cubano haverá de resistir a esse tipo de pressão. Haverá de sair adiante, e nós aqui no Brasil temos que ser muito solidários ao povo cubano.

A melhor forma de solidariedade, nesse momento, é facilitar a ida de medicamentos para Cuba. Por causa do bloqueio e pelo fato de Trump ter reincluído Cuba na lista de países promotores de terrorismo, quando o verdadeiro promotor de terrorismo são os Estados Unidos, Cuba está com muita dificuldade de obter remédios no mercado internacional. 

O MST está fazendo uma importante campanha para remeter remédios, em grande quantidade.  É fundamental esse nosso gesto de solidariedade.

O dia 7 de setembro deste ano se encaminha para ser uma data muito importante e emblemática, com mobilizações organizadas pelos dois lados do espectro político. Na sua visão qual é a importância dessa mobilização?

No caso do Brasil, o cuidado com a Casa Comum tem duplo aspecto: cuidar da nossa democracia e cuidar da nossa natureza. Cuidar do nosso equilíbrio ambiental principalmente neste ano, de realização da COP 30, em Belém, é fundamental. O Brasil é um país privilegiado por recursos naturais. 

A Amazônia ocupa 60% do território nacional e nós temos a obrigação de ser um exemplo em preservação ambiental, reduzir as emissões dos combustíveis fósseis,  reduzir a amplitude das nossas pastagens, dos nossos rebanhos, porque isso também afeta o desequilíbrio ambiental. E tentar deixar para as futuras gerações um país e um ambiente ecológico mais saudável.

É preciso, nessa mobilização do 7 de setembro, manifestar essas nossas inquietações, denunciar os crimes ambientais que têm ocorrido com muita frequência, como queimadas, desmatamentos, invasão de terras indígenas e quilombolas. A não demarcação das terras, uma falha do governo atual, há muitas terras indígenas na fila.

E acabar, definitivamente, com a discussão do marco temporal, que não faz o menor sentido. É uma agressão à história dos povos indígenas e também uma agressão à nossa própria constituição que já definiu os direitos dos indígenas. Tudo isso é fundamental  que levemos como bandeira, como pauta para as manifestações de 7 de Setembro. Vamos mobilizar, vamos convocar, vamos para a rua, porque é a forma de demonstrarmos a nossa indignação e também a nossa esperança.

O que a situação palestina hoje nos diz sobre nós enquanto humanidade e como você avalia a atuação do Papa Leão XIV até aqui?

Eu penso primeiro que o Papa está dando continuidade às posturas do Papa Francisco, que se colocou abertamente a favor da defesa dos direitos e da preservação do povo palestino, até mesmo de que exista um Estado palestino, e contra o genocídio promovido pelo atual governo de Israel.

Felizmente agora tem uma flotilha, com vários barcos, a caminho de Gaza, num gesto, não violento, de denúncia e indignação frente a esse genocídio. Esperamos que resulte num gesto político humanitário sem violência, sem perda de vidas humanas e sem agressão das tropas de Israel.

Vamos para a rua, porque é a forma de demonstrarmos a nossa indignação

Mas é preciso reforçarmos a nossa postura a favor do Estado Palestino. Por que Israel pode ter o seu Estado, com forças armadas, com todas as estruturas constituídas, e os palestinos não? Por que os palestinos não têm direito a permanecer naquela terra, que é deles, que historicamente foi invadida pelos hebreus? Até a Bíblia descreve essas invasões, diga-se de passagem, e a Bíblia foi majoritariamente escrita pelos próprios hebreus, que não negam que fizeram invasões.

O erro é atribuir muitas daquelas invasões à vontade de Deus. Deus quer que todos nós possamos viver em harmonia. Para isso fomos criados por ele. Como numa família em que as pessoas são diferentes, mas todas têm os mesmos direitos e oportunidades. Então é muito importante aumentarmos essa nossa solidariedade ao povo palestino e manifestarmos o nosso protesto, nossa posição radicalmente contrária ao genocídio que o governo de Israel promove contra o povo de Gaza e da Cisjordânia.

Não podemos, de maneira alguma, admitir que Israel, com o apoio dos Estados Unidos, se julgue acima das leis internacionais, acima da ONU. Assim, nós estamos voltando completamente a um estado total de barbárie. Foram séculos e séculos para estabelecermos leis internacionais, estabelecermos regras de uma convivência entre as nações e agora vemos esses absurdos ocorrerem e não podemos realmente deixá-los impune e imunes.

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