“Foi um julgamento exemplar e pedagógico para evitar novas investidas golpistas, mesmo nas formas mais sutis de mobilização”, é assim que Carol Proner classifica o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que condenou os oito integrantes do núcleo de comando da trama golpista, que culminou nos ataques de 8 de janeiro de 2023.
Proner é jurista, advogada e articulista, fundadora da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e integrante do Grupo Prerrogativas. Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro, atua principalmente nas áreas de direito internacional e dos direitos humanos.
Prioridade é discutir tributação das grandes fortunas e isenção de imposto de renda
Em entrevista ao Visões Populares, fala sobre a condenação dos réus, seu significado histórico e os próximos passos até o trânsito em julgado. Os votos dos ministros a favor da condenação e em defesa da democracia, a divergência do ministro Fux, o pleito pela aprovação de um projeto de anistia no Congresso e os ataques externos à nossa soberania também foram parte da conversa.
Confira a entrevista completa abaixo ou escute aqui!
Como você avalia a importância deste julgamento e da condenação para a história do nosso processo democrático?
Carol Proner – O julgamento da tentativa de golpe contra o Estado Democrático de Direito é, efetivamente, patrimônio da Justiça brasileira e do povo brasileiro. Cada voto, cada argumento e principalmente a condenação, são muito repercutidos. Todo mundo pôde acompanhar ao vivo, e eles realmente informam o devido processo legal e, portanto, são um legado democrático de autodefesa.
Creio que é, ainda, um escudo de autodefesa do funcionamento do sistema de Justiça. Quanto às provas que acompanham os autos, algumas delas foram inclusive transmitidas ao vivo na sessão. Foram votos longuíssimos, alguns até longos demais e durante esses dias, que constituem o total das sessões, nós pudemos ter uma aula de direito processual e da aplicação dos próprios instrumentos de manutenção da democracia, responsabilizando inclusive militares.
Acredito que o Brasil dá um exemplo, não só internamente, no funcionamento das instituições, como para o mundo. Porque em outros lugares do mundo não foi possível fazer o mesmo processo de responsabilização e nem em outros tempos históricos. Quer dizer, o Brasil faz isso hoje, mas no passado não fez.
Então, a sentença, os votos e a forma do processo, que ainda não transitou em julgado, tem o tempo recursal, são um exemplo de autodefesa democrática. As defesas foram, até certo ponto, muito eficazes, naquilo que poderiam argumentar como defesa dos réus e foram respeitadas, houve o devido processo legal.
Os votos de alguns ministros foram reconhecidos por serem acessíveis ao público geral e, ao mesmo tempo, fizeram uma forte defesa da democracia, rejeitando tentativas de interferência externa ao julgamento. Na sua visão os votos foram bem embasados juridicamente?
Nós não conhecemos ainda a redação final dos votos, eles podem ser emendados, dentro daquilo que foi pronunciado. O voto oral é diferente do voto escrito e do voto registrado, para compor o momento em que se inicia o período recursal, junto com a ata de julgamento. Por enquanto os votos foram pronunciados, mas nós não conhecemos exatamente os argumentos, como eles restarão na hora da publicação da ata.
Esse julgamento representa uma autodefesa democrática do Brasil
Mesmo tendo sido longos os votos, eles procuraram ser didáticos na comunicação, alguns até didáticos demais. Tentando explicar para o público em geral, já que esse é um julgamento tão importante para a sociedade, alguns termos ou alguns aspectos e etapas processuais, que tem uma explicação jurídica-legislativa, mais difícil de compreender. Mesmo a ideia de delação premiada, como ela foi constituída – uma única delação em oito etapas – foi explicada.
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O relator cumpriu muito esse papel, no início da relatoria, inclusive, mencionando os advogados de defesa nominalmente e tentando explicar para a população que havia um ritmo, até certo ponto, normal. Porque esta é uma das etapas do julgamento, que continua, com outras pessoas envolvidas nessa organização criminosa.
Eu acho que foi didático, também como um processo e um julgamento exemplar, para que não se repita nova tentativa de golpe, nem mesmo nos aspectos mais sutis de mobilização popular.
O ministro Luiz Fux, em seu voto, foi na direção oposta aos colegas. De forma a ecoar grande parte das alegações bolsonaristas. Como o voto foi recebido na comunidade jurídica? A argumentação utilizada pelo ministro se sustenta? E o que justificaria um voto tão contraditório com os próprios posicionamentos anteriores do ministro?
Tentando ler em perspectiva, o voto do ministro Fux, bem ou mal, legitimou o julgamento. Havia quem dissesse que ele pediria vista, mas ele foi para o debate, fez o voto que fez, levou muito tempo. Foram quase 13 horas de voto. Comparativamente, o relator do caso, ministro Alexandre Morais, dedicou 5 horas ao voto.
Foi desagradável para a própria corte, porque os argumentos inverteram e, de certa forma, confrontaram a metodologia proposta pelo próprio relator. Isso não é comum. O contraditório é que ele sempre foi considerado um ministro com característica punitivista. E, no fim, este mesmo ministro Fux julgou, condenou e acatou a condenação de 400 pessoas pelos atos que culminaram no dia 8 de janeiro de 2023.
Quer dizer, ele reconhece os atos violentos e depois faz uma virada jurídica. E isso, realmente, mudou a expectativa de muita gente. Individualizou os votos – o que não necessariamente é um critério ruim, mas nesse caso, pela proposta do relator, pela denúncia da procuradoria e pelas provas nos autos, a demonstração de organização criminosa restou, por maioria, configurada.
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Ao individualizar é como se fossem partes separadas de um único processo, ou a metáfora do boi fatiado, que o ministro Flávio Dino utilizou. Então, é essa contradição, seja porque argumenta um excesso de dados, quando ele mesmo, já julgou outros 400 casos com esses mesmos dados de prova. Ou ainda, porque, durante o mensalão e em outros momentos, ele sempre foi punitivista e rigoroso.
Algumas pessoas têm dito que parece que ele condenou o mordomo, quer dizer, absolve o mandante e as principais lideranças de articulação da tentativa de golpe e condena aquele cumpridor de ordens. Que, em tese, realmente, tendo participado como delator, faz parte da correia de transmissão dessa organização criminosa. Mas não seria ele a única autoria.
Fica muito contraditório efetivamente o fato de ele mesmo ter reconhecido a tentativa de golpe e eliminar as preliminares, não discutir o mérito, não participar da quantificação da pena. Mas por outro lado, o fato de ter participado, bem ou mal julgado, legitimou o processo do começo ao fim nesta fase pré-recursal.
Daqui em diante, como deve ser o andamento para a prisão efetiva de Bolsonaro e dos outros 7 réus do núcleo crucial? Qual sua expectativa para o trânsito em julgado?
Na liturgia do processo, se fosse um julgamento como outros no sentido dos prazos, fala-se em 60 dias, mas até 90 dias poderia demorar para depositarem os votos. Na próxima sessão, dia 23, a leitura do julgamento vai acontecer. Depois disso, 5 dias para o embargo de declaração, que é o recurso considerado mais razoável. Já que os infringentes dependeriam de dois ministros, coisa que não aconteceu.
Embargos de declaração, são aqueles que eventualmente esclarecem algum aspecto não muito claro do voto, não muito evidente. Já os infringentes, não cabem neste caso. Poderia ter outros embargos de esclarecimento e com isso a perspectiva é para o final do ano. Dezembro, provavelmente. Aí sim, a aplicação de pena em cada caso e em cada modalidade.
Como você vê a proposta de anistia? Você acredita na viabilidade da aprovação?
O Congresso tem muitos projetos de anistia paralelos já protocolados, que são usados como moeda de negociação política. Nós temos o primeiro projeto, que é o PL 2858 do deputado Major Vítor Hugo, que é considerado o texto mãe da discussão e que concede ampla anistia a manifestantes ligados ao processo eleitoral de 2022.
E a partir dele cria-se uma espécie de comissão especial, em outubro de 2024, em que se junta outros textos semelhantes, avança em abril deste ano e aprovam a urgência para a votação dia 17 de setembro de 2025. Tem outros vários PLs, uns considerados menos brandos e esse mais amplo.
Até a linguagem lembra outros momentos da história do Brasil. Toda anistia que tem como pretensão apagar os crimes e condutas, é uma contradição em termos. Acabamos de ter um julgamento, que representa uma autodefesa democrática do Brasil, aproveitando uma legislação reformada recentemente, mas que já vigente, da segurança nacional e que inclui um novo capítulo ao Código Penal Brasileiro.
Outros juristas argumentam que a própria finalidade do poder Legislativo fica questionada nesse caso da anistia, porque não pode haver um apagamento. É uma afronta ao poder Judiciário e a cláusula pétrea da Constituição, que proíbe retrocessos. A oposição está fazendo pressão política na Câmara. Já pré-eleição pretende uma solução mágica, que o legislador pudesse substituir o juízo de Justiça.
Anistia busca apagar a conduta criminosa de agentes públicos
Do modo como está proposto esse projeto de lei a finalidade é anular as consequências criminais para os atos do 8 de janeiro de 2023, a trama golpista, os atos anteriores. Aquilo que poderia configurar, e foi assim reconhecido no tribunal da máxima corte, como uma organização criminosa armada e com pretensão de violência. Inclusive ameaças à vida de autoridades. Isso é absolutamente incompatível com o próprio sentido legislativo, sem contar, que investe na conflagração dos poderes.
Isso ignora o alto preço que nós pagamos por não revisar a lei da anistia de 1979. Sabemos que o próprio Supremo tem um constrangimento por não ter revisado a lei de anistia. Quando a Corte Interamericana, seguindo a legislação internacional dos pactos de esquecimento na América Latina, recomendava a revisão, nós não revisamos. Esse entulho autoritário cobrou um preço recentemente.
Ou seja, comparar os processos de anistia recentes à outros das sucessivas tentativas de golpe no Brasil, com o que acontece agora, só reforça o nosso repúdio a qualquer tipo de anistia, que tenha como objetivo essa queda de braço política e apagar a conduta criminosa desses agentes públicos.
Existe algum respaldo legal ou político para a tentativa de interferência externa por parte dos EUA? Como você avalia a reação brasileira às medidas?
Essa é uma situação absolutamente inusitada. Que nós tenhamos um representante de governo de outro país, citando ministros da Suprema Corte e a Justiça brasileira, revoltado contra um julgamento, é algo desagradável, absolutamente não diplomático.
Sem contar que obriga o próprio STF a se colocar em uma posição de defesa da soberania nacional ou de porta-voz dessa defesa soberana. Não só do ponto de vista jurisdicional, como também dos valores e do próprio direito de decidir da Justiça brasileira.
Misturam-se os assuntos, porque há um representante do Congresso Nacional, em território estrangeiro, fazendo um lobby anti-soberania, incitando e estimulando manifestantes a beijarem a bandeira de outro país. Nós estamos numa situação inusitada e inaceitável.
O poder judiciário tem respondido muito bem. O que obriga também, qualquer pessoa que tem sentimento soberano, não xenófobo, mas que se respeita, a também defender essa decisão. Defender o direito de decidir, mais do que a decisão no sentido de mérito. O direito à autonomia do poder Judiciário e que, significa também, incluir aspectos de soberania econômica, porque esse julgamento conduz a boicotes na área econômica.
Depois esses boicotes têm sido flexibilizados, é bem verdade, porque nós sabemos que na relação com os Estados Unidos, não necessariamente boicotar certas áreas é a melhor estratégia econômica, para a própria economia daquele país. Mas o discurso político que tem sido explorado, por essa mesma oposição que defende a Anistia no Congresso, é extremamente desagradarável. E, até certo ponto, ajuda na coesão em torno da soberania, que também é um conceito em disputa.
O que podemos esperar para o próximo período, até as eleições de 2026? A nossa democracia está a salvo com a conclusão do processo do núcleo de comando do golpe?
Às vésperas do ano eleitoral, o tema jurídico acaba centralizando as atenções. Eu não sei se isso vai continuar, porque ainda temos o tempo da publicação dos votos e pode perder um pouco a centralidade. Por outro lado, temos aí as lideranças da oposição se articulando no Congresso para votar, com urgência, processos de anistia.
O país deveria avançar para outras pautas. Nós temos várias questões muito mais importantes. Cuidar do emprego e renda, cuidar do fim da escala 6 por 1, fazer uma reforma que garanta a justiça tributária e social. Seria muito mais importante.
A não revisão do entulho autoritário cobrou um preço recentemente
Com todo o respeito a juristas, e eu faço parte desse campo, nós deveríamos cuidar mais da economia, ouvir mais os engenheiros, os médicos, os ecologistas, os historiadores, para não esquecer o que aconteceu na história recente, e os artistas, porque nós andamos emocionalmente abalados, com tudo que vem acontecendo. Mas, infelizmente, nós estamos atrelados ao devido processo legal, que inclui aguardar o trânsito julgado, após a fase recursal.
Então, não podemos desprender ainda as atenções à parte jurídico-política e à disputa democrática, nesse processo, que abrange a responsabilização. Mas deveríamos também dar um pouco mais de espaço para debater projetos e o futuro do Brasil. Está em jogo tudo isso. A soberania ameaçada e a devolução de respostas não deveria se concentrar no jurídico e no processual.
Deveríamos discutir reforma tributária, tributação das grandes fortunas e isenção de imposto de renda. Coisas que estão na pauta e que temos maioria na sociedade e opinião pública para avançar.