Especial

Após 20 anos, vítimas de massacre lutam pela condenação de culpados e por vida digna

"Nós precisávamos de um apoio do governo para ajudar a nossa agricultura”, relata agricultor

Marabá (PA) |
Especial Feridas Abertas
Especial Feridas Abertas - Brasil de Fato

Foram 16 anos até que se encerrassem os pedidos de recursos que condenariam em definitivo os dois responsáveis pelas tropas policiais que assassinaram 21 sem-terra na Curva do S, trecho da rodovia PA-275, no estado Pará. Em 2012, coronel Mário Colares Pantoja e major José Maria Oliveira começaram a cumprir pena.

Além da demora para o encerramento do caso na Justiça, deixaram de ser responsabilizados os 155 policiais que participaram da ação e os chefes do Executivo de onde, segundo a Promotoria do caso, partiu a ordem para desobstrução da via, entre eles, o governador da época, Almir Gabriel (PSDB); o secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara; e o então comandante da Polícia Militar, Fabiano Lopes.

Este é o quadro que faz a palavra “impunidade” aparecer de forma recorrente entre aqueles que sobreviveram ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido no dia 17 de abril de 1996. “Por que a gente até hoje está falando sobre essa história e lutando ainda? Para justamente ver se a gente consegue trazer a justiça para perto da gente”, disse o lavrador Josimar Pereira Freitas, 53 anos, sobrevivente e coordenador da Associação dos Sobreviventes, Dependentes, Viúvas do Massacre de Eldorado dos Carajás e Conflitos Agrários do Pará.

Com uma área equivalente a 16% do território nacional, o Pará é o estado líder na violência no campo. De 1985 a 2014, foram 775 mortes, o que equivale a 40% dos assassinatos no país, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

De acordo com a entidade, o estabelecimento da impunidade teve início logo após o fim do massacre, pois, mesmo sabendo da ilegalidade, os policiais removeram os corpos da cena do crime e impossibilitaram a produção de perícias para identificação dos autores dos disparos. “Foi um processo de construção dentro da própria ação penal que apurou a responsabilidade pelas mortes, desde o início”, destacou Afonso Batista, advogado da comissão e que atuou como assistente de acusação no caso.

Julgamentos e recursos

O primeiro julgamento do massacre ocorreu em 1999, presidido pelo juiz Roberto Valle. Na ocasião, Oliveira e Pantoja foram absolvidos. O Tribunal de Justiça do Pará, no entanto, anulou a sessão em abril por suspeição, que indica parcialidade do presidente do júri. Após este fato, entre os 18 juízes da comarca de Belém, 17 se negaram a presidir o caso alegando simpatia aos policiais militares.

Nova sessão foi marcada para junho de 2001, a ser presidido pela juíza Eva do Amaral, mas a tentativa dela de retirar do processo um parecer técnico sobre as imagens do massacre gerou reação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O laudo trata da análise das imagens do momento do massacre, feitas pela TV Liberal e pelo perito Ricardo Molina, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

“A atuação do Poder Judiciário no curso da ação foi altamente questionável. Tornou-se tão escandalosa que levou aos advogados do MST e CPT a abandonar o processo em forma de protesto por entender que, da forma que estava sendo conduzida a ação penal, não haveria possibilidade de condenar os verdadeiros responsáveis pelos crimes”, avaliou Batista. Após o afastamento de Eva do Amaral, o júri foi presidido por Roberto Moura, levando à condenação dos comandantes das tropas.

Apesar da condenação, Américo Leal, advogado de defesa de Pantoja na época do julgamento em primeira instância, disse que pediria novo julgamento do caso, se ainda estivesse a frente da questão. “Se nós formos pegar hoje esse processo do [massacre de] Eldorado dos Carajás, poderão ainda, os condenados, que é o Pantoja e o Oliveira, serem absolvidos, porque contém nulidade absoluta lá”, apontou. Entre as questões apontadas por ele, está o impedimento da defesa de questionar todas as testemunhas convocadas para depor.

Políticas públicas

Mas não é apenas a responsabilização criminal dos culpados que constrói esse sentimento de impunidade e desassistência entre os sem-terra. “Alguns companheiros morreram, outros ficaram baleados, mas a gente continua aqui, lutando no dia a dia. Não está muito bom, porque nós precisávamos de um apoio do governo para ajudar a nossa agricultura”, relata o agricultor Raimundo dos Santos Gouveia, 61 anos, sobrevivente do massacre e morador do Assentamento 17 de abril, que fica na área da antiga Fazenda Macaxeira, em Eldorado dos Carajás.

Dificuldades com o escoamento da produção, tendo em vista a má condição das estradas do assentamento é exemplo das dificuldades enfrentadas pelos moradores do 17 de abril. Com uma produção, principalmente, de leite, milho e mandioca; os assentados dependem de atravessadores que buscam a produção na vila. “Depois de 20 anos, nós estamos aqui mais pela agricultura mesmo. É isso que segura a gente, é a comida, a agricultura, o arroz, a farinha, a mandioca, o milho, a galinha”, apontou. Apesar dos problemas, ele avalia que “está passando melhor do que estar nas fazendas alheias, nos lotes alheios”.

Para a advogada criminalista Luanna Tomaz, que preside a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará, a condenação criminal não encerra toda a esfera de responsabilização. “Não que ela não seja importante, ela também é, mas não é só isso. Casos como esse geram um sentimento de impunidade não só porque não houve um grande número de condenações, mas porque você não vê resultados e impactos de políticas públicas”, aponta. Ela destaca a importância de ações de reparação que envolvam a melhoria da qualidade de vida daquela comunidade como um todo.

 

Edição: ---