Violência

País negligencia o crime organizado e combate o inimigo errado, afirma pesquisadora

Não se pode combater organizações e fluxos ilegais sem mexer em articulações políticas e econômicas

Rede Brasil Atual |
Pesquisadora defende que a segurança pública se concentre em enfrentar os crimes violentos contra a vida
Pesquisadora defende que a segurança pública se concentre em enfrentar os crimes violentos contra a vida - Reprodução/ TVT

Nos últimos dias diversos especialistas explicaram que as matanças ocorridas nos presídios em Manaus e Boa Vista não só não foram um “acidente”, como definiu o presidente Michel Temer, como eram previsíveis desde o anúncio da ruptura, em outubro de 2016, da relação entre Comando Vermelho (CV) e Primeiro Comando da Capital (PCC).

Para a pesquisadora Jacqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos (UFScar) e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da instituição, as 99 mortes de presos demonstram que o sistema penal do Brasil luta contra o inimigo errado. Organizadora do Mapa do Encarceramento, lançado em 2015, Jacqueline avalia que todo o empenho da segurança pública do país está voltado para crimes de menor importância, enquanto a verdadeira estrutura do crime organizado não é combatida. 

“O tipo de controle que se faz no Brasil de organizações criminais e dos fluxos dos mercados ilegais tem pouca efetividade. Não tem como combater organizações criminais sem mexer com as articulações políticas e econômicas que elas têm. E é exatamente isso que não se faz no Brasil, onde queremos enfrentar o narcotráfico com o encarceramento de pequenos traficantes”, afirma a pesquisadora.

Nessa entrevista, ela destaca que os programas de metas e de bonificações policiais, em vigor em vários estados do país, colaboram para o caos do sistema carcerário. “O sucesso da atividade policial é medido pelo número de prisões e de apreensões realizadas. Vemos claramente que essas prisões ocorrem numa magnitude que está relacionada a essa ideia de bonificar policiais pelo número de prisões e flagrantes feitos.”

O problema, explica, é que o foco dessas prisões está no tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio, enquanto outros delitos mais graves não são enfrentados. “Homicídio é prioridade, feminicídio é prioridade, crimes graves que envolvem ameaças à vida, como estupro e sequestro, crimes que envolvem violência física devem ser as prioridades.”

Para ela, não há dúvida: o Brasil enfrenta de modo equivocado o crime. “Há pouca eficácia no combate ao crime em dimensão macro, que são realmente as redes criminais, como elas lavam dinheiro, como se organizam, quem são as lideranças principais e como ela corrompe o sistema. Se investe pouco nisso que é a sustentação da economia criminal.”

O que significou o rompimento entre o PCC e o CV?

Quando houve o rompimento, ficou bem claro que iria mudar a lógica de convivência das ações criminais. É uma disputa de hegemonia, de poder e de mercado dentro das penitenciárias, mas não só. É possível, como tem acontecido em algumas capitais e outras cidades médias, toda uma reorganização desses fluxos e de uma economia política do crime. Depois que houve a explicitação de que acabou o acordo entre PCC e CV, ficou o alerta de que havia a possibilidade de conflitos violentos dentro das cadeias, onde a presença é importante, mas também transbordando. O crescimento de homicídios em Natal, em 2016, já responde a essa tensão de grupos ligados de alguma forma ao CV ou ao PCC. Cada localidade tem uma combinação própria, com quadrilhas locais que se articulam nesses mercados ilegais e que podem ou não gerar violência.

Diante desses avisos, o que poderia ou deveria ter sido feito?

É muito difícil falar agora, é uma questão complexa que emerge de lógicas complexas. Todos os países que enfrentaram problemas com organizações criminais tiveram muita dificuldade. O tipo de controle que se faz no Brasil de organizações criminais e dos fluxos dos mercados ilegais tem pouca efetividade. Primeiro porque existem agentes políticos e estatais que estão totalmente envolvidos com a gestão dos mercados ilegais. Nós vemos a ponta do iceberg explodir nas posições mais frágeis, nas posições hierárquicas mais vulneráveis dessa cadeia econômica. Essas matanças são as franjas de uma economia criminal e uma disputa de poder. Não tem como combater organizações criminais sem mexer com todas as articulações políticas e econômicas que elas têm. E é exatamente isso que não se faz no Brasil, onde queremos enfrentar o narcotráfico com o encarceramento de pequenos traficantes, o que acaba não resolvendo nosso problema e ainda aumentando o escopo dessas organizações que têm na cadeia uma base de recrutamento de mão-de-obra.

De que forma o déficit de vagas nos presídios colabora para essa situação de elevada criminalidade?

Esse problema do déficit é estranho. Não é que tem déficit porque faltam vagam. O estado de São Paulo tem déficit ao mesmo tempo em que investiu como nunca na construção de presídios, chegando a ter 163 unidades prisionais. Minas Gerais também construiu muita cadeia num curto espaço de tempo e o número de presos cresceu seis vezes em dez anos. Esses estados fizeram investimento maciço em construções de presídios, contratação de mão de obra especializada, criação de carreira específica de agentes penitenciários. São Paulo e Minas Gerais são os dois estados que mais avançaram nessa questão e mesmo assim têm déficit.

Por que se prende muito?

Porque se prende sem uma política criminal responsável, se prende gente que não cometeu crime violento, mas isso não depende só da cabeça do juiz, depende da legislação também. Há programas de metas de prisões em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco. O sucesso da atividade policial é medido pelo número de prisões e de apreensões que são realizadas ou de casos solucionados. Quando se realiza uma prisão em flagrante, toda a burocracia que existe numa investigação, na prisão em flagrante fica simplificada. Então existe muita denúncia de flagrante forjado. As próprias audiências de custódia foram criadas pelo reconhecimento de que há muito preso provisório e que muitos detidos em flagrante não deveriam aguardar o julgamento preso ou, se chegarem a ser condenados, não vão receber pena de prisão. Então vemos claramente que essas prisões são realizadas numa magnitude que está relacionada a essa ideia de bonificar policiais pelo número de prisões e flagrantes realizados. E esses são os estados que mais aumentaram a população carcerária.

Dados do Mapa do Encarceramento mostram que 18,7% dos presos são condenados com penas de até quatro anos de reclusão e, por isso, podiam estar cumprindo penas alternativas, mas não estão.

É uma população que realmente não devia estar presa e é justamente a população visada pela audiência de custódia, que é para não manter encarcerado uma pessoa que quando julgada não receberá uma pena privativa. Fala-se muito em superlotação... Faltam vagas? Não sei se precisa construir mais presídios. O que é necessário, em primeiro lugar, é evitar que as pessoas que não precisem cumprir pena em regime fechado estejam lá dentro. As audiências de custódia são exatamente para mexer neste quadro, só que elas não estão implantadas em todos os lugares e também não temos estudo para avaliar como as audiências estão indo. Há um estudo, do qual faço parte, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para avaliar como as audiências de custódia estão funcionando. A pesquisa está sendo feita em Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, João Pessoa, Distrito Federal e Goiânia. 

Nas medidas anunciadas semana passada para enfrentar a crise, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, enfatizou o trabalho da Defensoria Pública para aliviar os presos provisórios. É esse o caminho?

O trabalho da Defensoria Pública poderia não ser tão superdimensionado se não tivéssemos uma polícia baseada em prisão em flagrante, com metas de prisão, e também com possíveis mudanças legislativas. Por que não uma proposta legislativa de que crimes cometidos sem violência recebam penas alternativas? Isto seria uma medida muito mais efetiva. Caso contrário, sobrecarrega a Defensoria, as prisões e o Ministério Público também. Não é só a Defensoria que precisa fazer seu trabalho. Para ela atuar, o Ministério Público tem de estudar a acusação, fazer as provas e o juiz julgar. Agora, é público e notório que as condições de trabalho da Defensoria Pública não são compatíveis com a estrutura e recursos do Ministério Público e do Judiciário, nem em salários e nem em termos de quantidade de pessoal.

A Defensoria Pública é uma ponta frágil do sistema?

É preciso um trabalho de articulação entre todas as instituições, e não de fragmentação. É um trabalho que vai desde a polícia civil e militar, que tem de ter prioridade e critério. Não faz sentido prender traficantes que muitas vezes são usuários, com pequeníssima quantidade de drogas para consumo próprio, que se for para uma audiência de custódia até resulta em soltura. Há todo um trabalho do Judiciário que poderia ser evitado e agilizado se houvesse uma articulação e estabelecimento de prioridades que sejam exequíveis. Homicídio é prioridade, feminicídio é prioridade, crimes graves que envolvem ameaças, estupro, sequestro, crimes que envolvem violência física devem ser as prioridades.

Mas essa eventual "descarcerização" não pode ser mal vista pela sociedade?

A gente não quer passar a mão na cabeça do bandido. Não queremos facilitar a vida do bandido. Estamos é reconhecendo que existem áreas fundamentais para assegurar a segurança do cidadão que estão descobertas. E esse recurso valioso para o funcionamento da segurança pública e do Poder Judiciário está sendo desperdiçado com casos que não têm tanta importância, como pequenas quantidades de drogas ou pequenos furtos em lojas, um sujeito que rouba uma camiseta, algo para comer, casos que poderiam ser solucionados de outra forma. É um delito, claro, mas está ocupando o sistema de Justiça com uma solução que poderia ser de natureza civil e penas alternativas.

Quando a gente fala que precisa racionalizar a aplicação da pena de prisão não é porque somos a favor de que o bandido tenha liberdade, é por que achamos que deve haver prioridade na ação. Aquilo que pode ser tratado de uma forma que não envolva a pena de prisão deve ser feito porque é mais barato tanto economicamente quanto nos efeitos sociais nefastos que a prisão causa em quem vai ser encarcerado, incluindo o contato com as organizações criminais dentro das prisões. Você pega um jovem que se envolveu numa questão simples de furto ou de pequena quantidade de drogas e coloca ele na cadeia, ali ele vai ter contato com as organizações que talvez não teria antes. Como as condições carcerárias são degradantes, a pessoa para sobreviver tem que se relacionar com quem dá as ordens no ambiente prisional. Não tem alternativa. No fim, isso tudo traz muito mais prejuízos do que benefícios.

As questões de fundo então passam por uma nova visão de quem prende?

Há o enfrentamento equivocado do crime. Há pouca eficácia no combate ao crime em dimensão macro, que são realmente as redes criminais, como elas lavam dinheiro, como se organizam, quem são as lideranças principais e como ela corrompe o sistema. Se investe pouco nisso que é a sustentação da economia criminal. Por outro lado se gasta muito recurso e se usa uma mão dura com pessoas que estão na franja desse sistema, usando mecanismos que fazem com que ela vá ter mais contato com o crime organizado e não menos.

Aquela pessoa que está na rua praticando um pequeno delito pode ser que não tenha contato com o crime organizado, mas se ela for presa, certamente terá. Pegar um jovem que não tem envolvimento com o crime organizado e jogá-lo dentro de uma cadeia que está em tensão, você não está resolvendo problema nenhum, pelo contrário, está amplificando um problema de segurança que vai redundar nisso que estamos assistindo e ainda coisa pior que pode ser desdobrar, porque esses conflitos são disputas de poder, de território e de mercado que podem sair da penitenciária e vir pra rua mesmo. É o que estamos assistindo empiricamente na Bahia, Alagoas, Rio Grande do Norte e Ceará. 

O Mapa do Encarceramento fala bastante sobre a tendência punitivista do Judiciário. Como é isso?

Ela é punitivista, mas é enviesada. Ela é muito punitivista com o baixo potencial lesivo, mas é leniente com crimes violentos, que são pouco investigados. Se calcula que só 8% dos crimes violentos são esclarecidos e processados. O Judiciário é muito punitivo com crimes que não são violentos, ligados ao patrimônio ou a drogas, e muito pouco punitivo com a corrupção, por exemplo. É uma seletividade na orientação daquilo que merece atenção do sistema penal. No caso dos crimes violentos, não é para isso que a polícia e o sistema penal estão olhando.

Mas a sensação de insegurança da população não está relacionada mais aos crimes contra a vida?

Sim, mas também à questão patrimonial pessoal. Você ter a sua casa invadida é algo de fato assustador, ter sua intimidade violada. Esses crimes que as pessoas mais têm medo, não produzem a maior parte da população carcerária. Hoje, 30% dos presos são por tráfico de drogas e quase metade é por crime patrimonial. Boa parte desses crimes patrimoniais não são cometidos de forma violenta, mas a outra parte sim e então é mesmo preocupante e deve ser combatido. Porém, nossas políticas de segurança pública estão tão ocupadas com a questão das drogas e dos crimes patrimoniais indistintamente, que faltam recursos, falta tempo e faltam vagas em presídios para tratar do que realmente é importante e deveria ser a prioridade.  

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