Posição

Os exames de Marisa Letícia e a crise da medicina brasileira

Em nota, médicos populares chamam atenção para a necessidade de repensar a formação médica no Brasil

Saúde Popular | São Paulo (SP) |
“Tem que romper no procedimento.  Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, disse um médico ao ver o exame de Marisa
“Tem que romper no procedimento.  Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, disse um médico ao ver o exame de Marisa - Arquivo ABr

A Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares lançou nota neste sábado (4), na qual se posiciona sobre o vazamento de exames de Marisa Letícia Lula da Silva. Para a organização, apesar de chocar, este fato não é novidade diante de situações vivenciadas na trajetória da formação médica no Brasil. "Vamos sendo submetidos aos poucos, em doses homeopáticas, a abusos e absurdos", diz o texto. Trotes violentos, tratamento diferenciado para pacientes que tenham cometido crime, além de casos de assédio moral e sexual são experiências características da formação em medicina.

"Diante desta crise, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares reforça a necessidade de que a sociedade se envolva na discussão dos médicos e médicas que nossos cursos estão formando. Nós, médicos e médicas, somos formados para servir à sociedade brasileira e é com ela que devemos discutir qual profissional devemos formar, com conteúdos éticos e humanistas indissociáveis da boa prática clínica."

Confira nota na íntegra:

“Tem que romper no procedimento. 
Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”

A frase acima foi veiculada em matéria do jornal O Globo, dita por um médico em um grupo de WhatsApp ao receber as tomografias vazadas de Marisa Letícia Lula da Silva. O fato de que estes exames tenham vazado já causa revolta. Ler o comentário do “colega” deixaria qualquer um estupefato. Entretanto, para muitos médicos e estudantes de medicina no Brasil tais fatos não se constituem novidade, e eles já existiam bem antes da polarização política que o país vive hoje.

Na trajetória da formação de um médico no Brasil, vamos sendo submetidos aos poucos, em doses homeopáticas, a abusos e absurdos. Seja em um ambulatório de Ginecologia na Faculdade onde dez estudantes fazem o toque vaginal na mesma paciente – é para que eles aprendam, diz o professor à paciente. Seja em um plantão de pronto-socorro onde se aprende a tratar os pacientes de um jeito e os “bandidos” de outro: sem analgésicos, tratados sem o mínimo de empatia e manejados com força desproporcional, como se aqueles que estão ali para cuidar da vida humana quisessem sentir o gosto de “revidar” o mal que supostamente fez o cidadão.

Aprendemos a aceitar que receber trotes violentos “faz parte”, pelo simples fato de que nos próximos 5 anos poderemos “descontar” nos próximos calouros. Aprendemos que fazer plantões ilegais em pequenas cidades no interior, nos passando por médicos, não tem problema, afinal, se não fossem estes cidadãos altruístas, quem atenderia os pobres coitados? Aprendemos a ficar calados com os abusos que passamos na Residência médica, desde cargas horárias excessivas até assédio moral dos preceptores. Aprendemos a ouvir calados os impropérios de chefes dos serviços em nome de manter um bom ambiente de trabalho. Tudo isso para “engrossar a casca”, dizem. Com todo esse aprendizado, nos parece que a resiliência é a maior habilidade desenvolvida pela nossa categoria, afinal, se formam muitos médicos e médicas éticos, humanos e comprometidos com a vida.

O episódio do vazamento dos exames da ex-primeira-dama traz à tona essas questões. As tomografias de Marisa Letícia percorreram vários grupos de WhatsApp, de São Paulo para todo o país, e foram recebidas da forma mais natural possível, como se fosse algo corriqueiro receber no celular exames de um paciente que não está sob seus cuidados. Discutir casos com a equipe do próprio hospital nesses grupos, no qual todos são obrigados ao sigilo médico e com o intuito de elucidar diagnósticos, é uma coisa. Mas, neste caso, a quebra do sigilo médico foi notória. O pior é que alguns dos que vazaram o exame não o fizeram com o intuito de discutir um caso clínico, mas sim para tripudiar em cima do sofrimento humano. Não há polarização política que justifique atos como este.

Nestes momentos, nossa categoria fica exposta, na berlinda, com nossos pacientes se perguntando: “Será que isto acontece comigo?”. De forma absolutamente estarrecedora, nos deparamos com comentários de indivíduos que nunca deveriam ter se formado médicos, que não possuem o mínimo de humanidade e ética. Infelizmente é preciso lembrar que há mais destes prestes a se formar, e que é preciso fazer alguma coisa, em nome daqueles que exercem a medicina de forma digna e principalmente em nome de nossos pacientes.

Diante desta crise, a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares reforça a necessidade de que a sociedade se envolva na discussão dos médicos e médicas que nossos cursos estão formando. Nós, médicos e médicas, somos formados para servir à sociedade brasileira e é com ela que devemos discutir qual profissional devemos formar, com conteúdos éticos e humanistas indissociáveis da boa prática clínica.

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