Camões

Artigo: Indignação em tempos sombrios

Como no funeral de Glauber Rocha, quando Darcy Ribeiro discursou, também havia tensão no ar na entrega do Prêmio Camões

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Raduan Nassar, o embaixador de Portugal Jorge Cabral e o ministro da Cultura, Roberto Freire, na entrega do Prêmio Camões
Raduan Nassar, o embaixador de Portugal Jorge Cabral e o ministro da Cultura, Roberto Freire, na entrega do Prêmio Camões - Reprodução

O cineasta Silvio Tendler, em agosto de 1981, levou – de improviso – sua equipe de filmagem ao Parque Lage, no Rio de Janeiro, para filmar o enterro de Glauber Rocha. As imagens, durante anos proibidas pela mãe de Glauber, atualmente podem ser vistas no documentário “Glauber, Labirinto do Brasil” (2003). Exibem-se nas cenas momentos de comoção. A certa altura, surge em meio ao cortejo o antropólogo Darcy Ribeiro, amigo de Glauber, que dá início a um discurso emocionado, à beira do caixão. Sua voz se ergue e se embarga e choram os demais ao seu redor:

“Sua breve vida. Sem pele, com a carne exposta. Capaz de gozo decerto, não é, Glauber? Mas mais capaz de dor, da nossa dor. Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando convulsivamente. Eu custei a entender, ninguém entendia, que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava esse país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura e não suportava, chorava, chorava, chorava... Os filmes do Glauber são isso, é um lamento, é um grito, é um berro. Esta é a herança que fica de Glauber. O que fica de Glauber para nós: a herança de sua indignação, ele foi o mais indignado de nós, indignado com o mundo tal qual é, assim, indignado porque mais que nós também Glauber podia ser o mundo que podia ser... que vai ser, Glauber! Que há de ser! Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo, louco.”

Assim como Glauber Rocha, Darcy Ribeiro transpirava vida e indignação. Morto há 20 anos, em fevereiro de 1997, vítima de um câncer, do qual já fora desenganado anos antes pelos médicos. Em janeiro de 1995, o antropólogo decidiu fugir da UTI do Hospital Samaritano, em Maricá, onde estava internado, pois tinha um livro a ser concluído, iniciado há trinta anos, escrito e reescrito, mas inconcluso. Ao ver-se “na iminência de morrer sem concluí-lo”, fugiu para terminar O Povo Brasileiro, finalmente publicado meses depois. No ano seguinte, em palestra na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, debilitado pelo câncer – que há anos não conseguia matá-lo – o antropólogo deu um depoimento a professores e estudantes, sobre sua trajetória, sua fuga para concluir o livro, seu entusiasmo com o Movimento Sem Terra, segundo ele, o primeiro movimento social da história brasileira surgido das camadas populares. Havia euforia em sua voz, mesmo com o cruel massacre de 16 trabalhadores do movimento, em Eldorado dos Carajás, no Pará, ocorrido em abril daquele ano.

A imagem do Darcy Ribeiro jovem e castigado diante do caixão do amigo cineasta – no período final da ditadura brasileira – transbordando paixão e esperança, sobreposta à outra, quase duas décadas depois, fragilizado no ocaso de sua existência, mas ainda esperançoso – no início de um novo período democrático – compõe uma sequência significativa. Tanto os neoliberais anos 90 quanto a década seguinte pareciam querer dar conta de formas distintas de superação, na história brasileira, do período de exceção que foi a ditadura civil militar dos anos 60. Seja por qual versão fosse, os anos de totalitarismo estariam superados.

Um terceiro quadro, por seu caráter exemplar, poderia ser acrescido à sequência dos anteriores, para pensarmos no contexto atual brasileiro. O enfrentamento ocorreu num pátio interno do Museu Lasar Segall, no Bairro da Vila Mariana, em São Paulo, por ocasião da entrega de um prêmio literário. Havia câmaras e celulares mirando a cerimônia de entrega do Prêmio Camões 2016. Como na cena do funeral de Glauber Rocha, havia gravidade e tensão no ar. Enfileiradas, três figuras díspares: à esquerda, o laureado – o escritor brasileiro Raduan Nassar – ao centro, o embaixador de Portugal no Brasil e à direita o ministro da cultura, Roberto Freire. Em estranha inversão feita pelo cerimonial, o escritor, eleito por unanimidade para receber o prêmio, caminha ao púlpito, para pronunciar-se antes das autoridades do Brasil e de Portugal. Não está de terno e gravata e não tem o ar carrancudo do ministro. Em seu discurso, agradece aos portugueses e a Portugal para, em seguida, pedir licença ao embaixador para “tratar temas pertinentes a brasileiros. Mas eventualmente de interesse – por que não? – a Portugal também.”. A crítica é sintética, feroz e nada figurada, como que a argumentar antecipadamente a quem ousasse afirmar que se vivem tempos democráticos no país:

“Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, por um partidarismo exacerbado. Há vídeo atestando a virulência da sua fala. E esta a figura exótica indicada agora ao Supremo Tribunal Federal. Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro. Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.”

Após ampliar a crítica à ação retrógrada do STF, o escritor conclui: “Não há como ficar calado.” A maioria do público o aplaude e pede pela queda do presidente. O embaixador português vira-se para o ministro da cultura brasileiro. Nenhum dos dois olha para Raduan, que se senta impassível, enquanto os colegas de cadeira bebem a água servida a eles, mas não ao escritor. Após a fala protocolar do embaixador de Portugal, o ministro brasileiro, um espécime cuja figura – mas não só – pode nos fazer pensar em Antônio das Mortes, personagem de um filme de Glauber Rocha, dirige-se ao púlpito, mas não para cumprir seu papel protocolar de falar em nome do ministério – extinto no primeiro dia do governo Temer e recriado por força da pressão popular. Se assim fosse – como ocorreu na entrega do Prêmio Jabuti, em novembro de 2016, com seu representante, o constrangido cineasta João Batista de Andrade – teria ouvido gritos e vaias, a mácula que cabe em eventos de arte e cultura a quem se atribua tal papel. Não, o ex-comunista (sic)1 dirigiu-se a uma plateia que incluía Eduardo Suplicy, Marilena Chauí, Antonio Amorim, Laymert Garcia dos Santos e Augusto Massi, para criticar de modo veemente o discurso de Raduan Nassar e fazer a defesa do que, ao menos para ele, seria o governo democrático e legítimo de Michel Temer.

A assistência o escuta, atenta, mas mostra crescentes sinais de desconforto. Vozes erguem-se para contra-argumentar sua fala. Quando o ministro diz não restar “nenhuma dúvida sobre o momento democrático” vivido no Brasil, ouve de um dos presentes que ele é um humorista. Ao afirmar que o fato de o governo brasileiro premiar um adversário político seu seria prova disso e Raduan Nassar ter aceito o prêmio em dinheiro, quando poderia tê-lo recusado seria uma prova de sua impostura. Laymer Garcia dos Santos diz: “O prêmio é maior, ele é um prêmio da literatura da língua portuguesa". Marilena Chauí pede seu silêncio, por ele não estar à altura do evento. Augusto Massi diz que o dia é de Raduan e que sua obra é quem deve falar.

No auge de sua cólera, o ministro grita ao público, ameaçador: “Este histrionismo oposicionista evidentemente tem seus dias contados!”. A plateia, atônita, pergunta-se a que exatamente se referia-se Freire: ao supostamente inequívoco momento democrático do Brasil ou aos crescentes abusos policiais já referidos por Raduan? Naquele momento já não havia mais discurso, como tampouco parecia haver diante do público um ministro da Cultura, pasta que, em outros momentos, já fora ocupada por intelectuais como Juca Ferreira e Gilberto Gil. Freire retira-se de modo abrupto, apequenado, entre muito mais vaias que aplausos.

O discurso de Raduan Nassar produziu um efeito, sem dúvida. Ao dizer “não é possível ficar calado” ele levou os demais a que também o fizessem. Toda a balbúrdia que se sucedeu orbitava entre poder e não poder dizer. Freire propalava a democracia brasileira por permitir a voz ao adversário, embora o censurasse e desautorizasse. Todos se posicionaram na entrega do Prêmio Camões, de modo eloquente.

Tal como Darcy Ribeiro tomava a palavra, repercutindo a arte e a indignação de Glauber Rocha, à beira de seu caixão, e logo na universidade, dando o lugar devido ao MST na história brasileira, Raduan Nassar confronta mais uma vez a truculência nacional. Veemente, mostra com seu gesto que a palavra é a arma dos que não matam.

Nada é novo neste Brasil em transe. O que hoje se chama governo legítimo e democrático noutros tempos já se chamou “revolução”. Os céus hoje sombrios, já o foram de outra feita. Antônio das Mortes sempre que estufa o peito, desguarnece o bucho, alvo certo para peixeira.

*Wilson Alves-Bezerra é professor da UFSCar e autor de Páginas Latino-Americanas (EDUFSCar / Oficina Raquel)

1 Debate-se ainda nos meios intelectuais a existência de ex-comunistas. Atualmente, os críticos coincidem em ponderar que o indivíduo ou continuará sendo comunista ou, por outra, nunca o terá sido.

Edição: José Eduardo Bernardes