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Especial Lava Jato

Lava Jato versus direito de defesa

Operação da PF abre precedentes que ameaçam a Constituição Federal de 1988

Brasil de Fato, Curitiba (PR) |
Operação da PF pode servir de base para criminalizar a população pobre
Operação da PF pode servir de base para criminalizar a população pobre - Lula Marques/AGPT

Na década de 1960, a população brasileira teve certeza de que vivia sob uma ditadura quando o Ato Institucional nº 5 eliminou o direito de defesa dos acusados. Este é um elemento típico dos regimes democráticos, e está baseado na presunção de inocência – todos devem ser tratados como inocentes, até que se prove o contrário.

Na operação Lava Jato, pelo menos dois mecanismos ameaçam o direito de defesa, previsto na Constituição de 1988: a delação premiada e a condução coercitiva.

Mercado de informações

Nas delações premiadas, políticos e empresários aceitam “contar o que sabem” em troca de uma redução de pena. Em três anos, foram firmados 71 acordos de delação com pessoas físicas – sem contar os depoimentos dos 77 executivos da Odebrecht, homologados em janeiro: um recorde no país.

A maior crítica dos juristas é com relação a seletividade na escolha das delações. “Qual o critério objetivo, transparente e republicano para escolha de quem vai fazer delação premiada?”, questiona o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. “E qual o critério para fixar o valor das indenizações nas delações? Nada disso é público”.

 

Indícios de tortura

Uma reportagem publicada na revista Piauí em junho de 2016 sugere que o ex-senador Delcídio do Amaral fez sua delação sob efeito de um “gás de combustão”, após ficar trancado em um quarto escuro. Para o juiz Alexandre Morais da Rosa, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aquela delação deve ser anulada, se o caso for comprovado. “O uso de qualquer elemento externo de pressão pode transformar a livre manifestação de vontade em decisão viciada”, analisa. “O problema é que depois de obtida, a anulação depende do Poder Judiciário. Aí a coisa complica”.

Condução coercitiva

Embora também tenha uma visão crítica sobre a seletividade nas delações premiadas, o professor da UFSC é ainda mais contundente ao falar sobre as conduções coercitivas – casos em que o acusado é levado, mesmo contra a vontade, a prestar depoimento diante de autoridades. “É sempre um mecanismo autoritário”, ressalta. “O acusado tem o direito de não produzir prova contra si mesmo, por disposição internacional e constitucional”.

Até hoje, a Lava Jato fez 197 conduções coercitivas. A mais polêmica foi a do ex-presidente Lula, em março de 2016: em nenhum momento, o petista havia negado uma solicitação para colaborar com as investigações.

Função do juiz 

Há duas semanas, Juarez Cirino dos Santos, um dos advogados de Lula, comparou a atuação do juiz Sérgio Moro à de um “inquisidor”. No sistema adotado pelo Brasil, a função do juiz é apenas julgar. Quem deve investigar e acusar são a Polícia e o Ministério Público. Quando o juiz participa ou assume outras funções na investigação, como Moro na Lava Jato, o sistema é chamado de inquisitorial.

Ruim para todos, pior para os pobres

Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto cita três exemplos de que a presunção de inocência foi deixada de lado na Lava Jato: 1) As prisões cautelares [sem sentença, por tempo indeterminado] passaram a ser fundamentadas apenas na gravidade do crime investigado; 2) O esgotamento dos recursos deixou de ser necessário para alguém ser condenado em segunda instância; 3) Algumas delações adquiriram importância e credibilidade antes mesmo da comprovação do que foi alegado.

Ao banalizar essas práticas, a Lava Jato ameaça o direito de defesa não apenas dos políticos e empresários citados na operação: “Quando se perde uma garantia, ficam vulneráveis todos os cidadãos”, argumenta o professor da USP. Pior para aqueles que não podem pagar por um advogado.

O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 40% dos detentos não foram condenados definitivamente – ou seja, não esgotaram os recursos previstos para provar sua inocência. Ainda segundo o CNJ, a maioria deles são negros, pobres e têm baixa escolaridade.

Este material faz parte da cobertura especial da operação Lava Jato. Clique aqui para ter acesso a todos os materiais produzidos até o momento.

Edição: Ednubia Ghisi