ENTREVISTA

Venezuela não vai prejudicar os pobres para sair da crise, diz assessor de Maduro

Mesmo com forte queda do preço do petróleo, governo não reduziu investimentos sociais, ressalta Serrano

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Vista de um bairro popular de Caracas
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Atualizada às 15h43 de 31/05

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“A economia da Venezuela é pouco compreendida no exterior porque os objetivos de seu modelo econômico são distintos dos adotados por países que tomaram o caminho neoliberal. (…) Toda a política econômica venezuelana pretende melhorar e satisfazer os direitos econômicos e sociais dos excluídos historicamente”. A definição é do economista espanhol Alfredo Serrano Mancilla.

Acompanhe nosso especial: O que está acontecendo na Venezuela?

Serrano é uma figura não ortodoxa tanto na aparência descolada – na maioria das vezes vestido com camiseta e calça jeans – , como nas ideias econômicas que defende. Seu pensamento, no entanto, tem influenciado lideranças políticas na América Latina, em países como Equador, Bolívia e a Venezuela do presidente Nicolás Maduro.

Diretor e fundador do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), Serrano é professor e pós-doutorado (PHD) em economia com teses apresentadas em universidades de Espanha, Itália e Canadá. Na Venezuela, é assessor econômico do governo e entusiasta da criação dos Claps (Comitês Locais de Alimentação e Produção), política pública responsável pela diminuição emergencial da falta de produtos básicos nas casas dos venezuelanos mais pobres e pela recuperação, em parte, da popularidade do governo chavista.

Acompanhe a íntegra da primeira parte da entrevista:

Qual a situação da economia da Venezuela, hoje?
A economia da Venezuela é pouco compreendida no exterior porque os critérios e os objetivos do modelo econômico na Venezuela, seguramente, são distintos dos objetivos e critérios de outros modelos econômicos como, atualmente, do Brasil de [Michel] Temer ou da União Européia e de outros países que têm tomado o caminho neoliberal.

Na Venezuela, a revolução bolivariana [do ex-presidente Hugo] Chávez e que agora segue com Maduro, fixou objetivos que são determinantes para entender a economia do país. O ponto inicial é que o centro da política econômica é a satisfação dos direitos sociais. Portanto, toda a política econômica pretende melhorar e satisfazer os direitos econômicos e sociais dos excluídos historicamente. Não podemos nos esquecer disso quando analisamos a economia da Venezuela.

Mas como estão os indicadores da economia venezuelana?
Todos os indicadores, não do governo, mas de organismos internacionais sobre a Venezuela, nesses 18 anos (governos Chávez e Maduro), desde a CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação], Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], entre outros, estabelecem que a Venezuela tem melhorado os problemas sociais. O país reduziu a pobreza, a desigualdade e a taxa de desemprego atual está abaixo de 7%, mesmo nessa crise.

Economista espanhol Alfredo Serrano Mancilla

Acho que no Brasil a taxa de desemprego está em 12%…
Sim, 12%. A Venezuela está com taxas mais baixa que a Colômbia, que o México. É uma economia que tem recuperado a soberania nos setores estratégicos. Foi capaz de apropriar-se de boa parte da renda petroleira, que antes se evadia do país. Desde que começou o governo do presidente Hugo Chávez, a renda ficou na Venezuela e começou a ser redistribuída. Nos últimos três anos, a Venezuela teve que afrontar o que os economistas denominam de uma forte ‘restrição externa’.

A queda dos preços do petróleo está entre elas…
Uma grande queda dos preços do petróleo. No ano de 2014, a média dos preços do barril de petróleo estava em US$ 88 dólares. Em 2015, o valor foi para US$ 44 e, em 2016, o valor chegou a cerca de US$ 32. Essa economia nos três últimos anos teve que se defrontar com uma queda de mais da metade dos preços.

Soma-se a isso uma segunda restrição externa: o chamado ‘risco país’ que é ditado pelas agências internacionais de avaliação de risco. Ele está acima de dois mil pontos, em torno de 2.200, mas já chegou a três mil pontos. O item principal da mediação do risco país é a possibilidade de não pagamento da dívida externa, só que nos últimos quatro anos, a Venezuela tem pagado todos os seus compromissos com a dívida externa. Não há nenhum sentido econômico que justifique o risco país tão alto se a Venezuela cumpre com todos os seus compromissos.

Mas existem outras variáveis do risco país para Venezuela ter uma pontuação tão alta?
A principal variável, por definição, é a possibilidade de não pagar a dívida. A Venezuela, nos últimos três anos, já pagou mais de US$ 50 bilhões. Um dado importante: mais de 90% dos credores da dívida venezuelana jamais revenderam seus papéis a nenhum outro mercado secundário, porque demonstravam ter segurança no pagamento da dívida venezuelana.

Dos credores, 90% jamais se desfizeram de seus papéis. Ficaram com eles porque têm confiança no pagamento. Portanto, não há correspondência com o atual número do risco país.

Há ainda outra restrição: os organismos financeiros internacionais têm impedido a Venezuela de acessar os canais de financiamento internacional. Além disso, estão fechando as portas para todo o Estado venezuelano, para agentes públicos e privados, impedindo que o país possa seguir cobrindo seus pagamentos habituais com provedores externos.

Essas restrições externas colocam a economia da Venezuela nessas condições, uma economia que tem como grande desafio a questão produtiva. Para sustentar seus indicadores sociais aplaudidos internacionalmente, o país precisa ter um desenvolvimento produtivo importante. Aqui, durante os últimos 10 anos, se triplicou e democratizou o consumo: as classes excluídas foram incluídas.

Esse consumo não foi acompanhado de produção nacional…
A partir de 2006, houve uma intenção de dotar de capacidade instalada [potencial de produção] as grandes empresas do país, mas os processos produtivos são mais complexos. No mundo, nos últimos 30 anos, o neoliberalismo mudou a maneira de produzir. Hoje, nenhum país produz tudo, há grandes cadeias globais. Um celular é produzido por 30 países diferentes, um automóvel é produzido por 15 países diferentes. De alguma maneira, quando algum país vai transformar o modelo produtivo, tem que saber que terá dependência de certos insumos produtivos em matéria tecnológica, das patentes, da propriedade intelectual, do valor agregado que está centrado em diferentes países. Então, desde 2006 o chavismo se preocupou de dotar de capacidade instalada o país.

Por exemplo, a indústria farmacêutica tem capacidade instalada no país e é uma das melhores em tecnologia de ponta, mas para produzir, no entanto, necessita de know-how e todos os insumos produtivos. A agenda econômica bolivariana, aprovada em fevereiro de 2016, deixa claro que o principal objetivo da economia é distribuir e gerar riqueza para produzir. As empresas perceberam que temos uma economia fortemente dependente das exportações petroleiras e das importações. Portanto, essa dupla dependência, é que tem que ser enfrentada.

O presidente Temer aprovou no Congresso brasileiro uma emenda à Constituição que congelou o orçamento público por 20 anos. Como está sendo executado o orçamento público da Venezuela?
Esse é um grande desafio do país, que tem que modificar seu modelo produtivo sem abrir mão do social. Ou seja, não vai fazer isso para, em troca, cortar direitos sociais, salários ou reduzir o orçamento público em investimentos sociais. Hoje, 70% do orçamento público da Venezuela é destinado aos investimentos sociais. Veja o exemplo da Missión Vivenda (programa de habitação popular), com habitações a preços absolutamente acessíveis sem comparação com nenhum lugar no mundo. Já foram construídas 1,5 milhões de habitações, embora o preço do petróleo tenha passado de US$ 88 a US$ 32 dólares.

Aí está a grande tensão do modelo venezuelano, porque o país nunca vai renunciar aos investimentos sociais, como faz [Manoel] Santos, na Colômbia, ou Temer, no Brasil, que, não só quer privatizar, como também eliminar o sistema de pensões (reforma da previdência), ou resolver através do desemprego como está fazendo (Maurício) Macri na Argentina.

O governo deveria liberar o câmbio?
A questão da liberalização ou não do tipo de câmbio, outra vez, seria cair em uma armadilha. O primeiro é discutir de onde virão as divisas. Se eu não tenho divisas, é muito difícil discutir o valor do tipo de câmbio, se é livre ou não. Portanto, a primeira discussão é o que fazer para captar mais divisas. Como amplia a base exportadora para trazer mais divisas? Na Venezuela, faz pouco tempo, de cada US$ 100 que se exportava, US$ 60 ficava com o Banco Central e US$ 40 com o exportador. Hoje, o exportador fica com US$ 80 e o Banco Central só com US$ 20. A quantidade de dinheiro que fica com ele [o exportador] é para fomentar mais exportações.

E esses US$ 80 dólares estão sendo reinvestidos na Venezuela?
Esse é um debate para fazer. O governo tem tomado decisões em matéria de política cambial para fomentar a chegada de mais divisas, também com o turismo. Há várias medidas que tentam incentivar o turismo porque este é um país de grande riqueza e tão bonito...

Mas não é só trazer divisas, tem que saber utilizar. Se eu permito que as divisas sejam levadas por apenas uma pessoa, que vai comprar grandes barcos ou iates, estamos tendo um efeito muito negativo na economia, porque estaríamos utilizando as divisas para um bem não produtivo e para uma minoria.

Não é a hora do governo Maduro fazer um grande plano econômico?
A Agenda Econômica Bolivariana é um grande plano onde se estabelecem os 15 motores produtivos prioritários para o país. Para as pessoas é importante alimentação, higiene e saúde. Para esses três temas, temos a Gran Missión de Abastecimiento Soberano [programa social de abastecimento], que é um plano de impulso, de incentivo às exportações. Tem os CLAPs [Comitês Locais de Abastecimento e Produção], que também estão incentivando modelos produtivos que permitam abastecer as necessidades das populações, evitando o comportamento especulativo.

Mas o Clap não parece um programa emergencial?
Eles têm dois objetivos, que é o conjuntural, o imediato, a situação difícil que o Estado está reconhecendo e buscando a maneira para que as pessoas tenham rapidamente os produtos básicos. Chávez dizia que sempre estava preocupado com a economia do "agora", do "já". Dizia que, no longo prazo, estaríamos todos mortos.

Mas há o objetivo de médio e longo prazo. O Clap produz. Estamos buscando mecanismos de produção. Então, é uma caixa [com os alimentos] que chega à população e é produzida por um produtor nacional. Hoje em dia, por lei, a produção nacional tem que ser 50% destinada aos Claps. A Venezuela não é um Estado de bem-estar social, porque o estado de bem-estar social, ainda assim, negocia com os lucros do capital. Quando o capital tem algum problema interno, o bem-estar passa a ser mal-estar. Aqui, as missões sociais, mesmo com todas as dificuldades, se mantêm. Não há relação com o preço do petróleo.

Na última pesquisa de março de 2017, Maduro recuperou um pouco a popularidade com relação a dezembro de 2016. O CLAP influenciou essa avaliação?
Pesquisas reconhecessem que 60% da população está satisfeita com os Claps. Seguramente eles deveriam ser melhores, mais homogêneos, mais regulares, mas isso é parte do aprendizado, porque já é uma política pública. Outro tema que as pessoas estão percebendo é que Nicolás Maduro não vai vender a Venezuela a nenhum impostor estrangeiro, a nenhum impostor da Venezuela.

É isso que sustenta o Governo Maduro?
Ele tem compreendido como navegar contra a adversidade. Isso não é fácil para qualquer político. O presidente Maduro tem sabido resistir e governar. Eu acredito que, para além das dificuldades, o chavismo define qual deverão ser os objetivos estratégicos do país. A tudo isso se soma uma grande valentia do governo porque não é fácil resistir a pressões externas.

Edição: Vanessa Martina Silva