Entrevista

Cenário atual faz democracia brasileira retroceder, diz sociólogo

Em entrevista ao Brasil de Fato, Marcelo Siqueira Ridenti discute temas como a ditadura militar e o golpe de 2016

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Ridenti afirma que todo processo democrático é inconcluso por conta do cerceamento aos direitos sociais e às liberdades
Ridenti afirma que todo processo democrático é inconcluso por conta do cerceamento aos direitos sociais e às liberdades - Cristiane Sampaio

Para o sociólogo Marcelo Siqueira Ridenti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cenário atual da política brasileira se desenrola como um retrocesso diante de conquistas democráticas da história recente do país.

Para ele, o Brasil vinha vivenciando, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), passando pelas gestões de Lula (PT) e Dilma (PT), uma ascensão que parecia anunciar novas ampliações democráticas. Mas o processo teria sido interrompido com vistas à decomposição dos direitos sociais já garantidos no país. Um movimento que se equipara, em alguns aspectos, ao ocorrido em 1964, quando o Estado brasileiro foi tomado pela ditadura militar.

“Tanto naquela época quanto agora foram processos evidentemente contra os direitos dos trabalhadores”, compara o sociólogo, que se dedica a pesquisar temas como a ditadura militar, a esquerda brasileira e participação da imprensa no golpe da década de 1960.

De passagem por Brasília para participar do Simpósio Nacional de História, ele conversou com o Brasil de Fato sobre esse e outros temas, na entrevista que você confere a seguir.

O senhor disse que as elites brasileiras estão sempre dispostas a dar golpes quando têm os privilégios ameaçados. Nesse sentido, que paralelo poderia ser traçado entre o que se deu em 1964 e o que o Brasil tem vivido recentemente?

São processos diferentes... Nós não devemos encaixar esse processo recente naquele porque é um pouco diferente, até porque ali havia o contexto da Guerra Fria, havia inclusive propostas fundamentalmente diferentes em jogo pro futuro do Brasil, que não é o caso agora. Mas a minha interpretação é que, nos últimos governos, não houve uma proposta de ruptura, de uma transformação profunda da sociedade brasileira no sentido de uma reforma agrária ou de um modelo econômico muito radicalmente diferente do anterior. 

Mas houve algumas mudanças, por exemplo, no âmbito da educação, com a ampliação de vagas no ensino superior, que foi muito grande – não só no ensino público, mas também no privado – e que gerou o acesso, por exemplo, de 1/3 dos atuais universitários do Brasil, que não vieram de famílias que já tinham tradição de ensino superior. Então, o que nós vemos é um aumento enorme do contingente, por exemplo, de estudantes. E também uma outra coisa que mudou foi a questão das cotas, de um acesso mais democratizado ao ensino geral e ao ensino superior em particular.

Isso gera enormes desejos de ascensão por parte dos que estão sendo beneficiados por essas políticas e, de outro lado, um enorme medo de perda de privilégios daqueles que já tinham, por exemplo, cadeira cativa no ensino superior. E, se você olha a composição social tanto das manifestações pelo impeachment da Dilma quanto das manifestações sociais contra o golpe, você vai ver que elas são muito parecidas. Elas têm a característica de serem manifestações com pessoas jovens, com acesso ao ensino superior. Os dados do Datafolha apontam isso. 

Então, vamos ver que temos tanto a favor do governo deposto quanto a favor do golpe uma base social parecida, que tem justamente esses setores que ascenderam ou que estão, nesse momento que houve nos governos anteriores, na chamada integração pelo consumo – inclusive, integração pelo consumo da mercadoria “ensino”. A base social de mobilização a favor do impeachment ou contra o golpe é parecida. 

Por incrível que pareça, nas classes médias intelectualizadas, pelo menos as que foram às ruas, me parece que o movimento foi profundamente conservador e beneficiou, assim como em 1964, as classes proprietárias do Brasil, mas os processos são muito diferentes. Estou apenas pontuando um aspecto pequeno, que é esse da composição social das manifestações.

O que tivemos recentemente no Brasil pode ser apontado como um golpe de caráter mais institucional, uma vez que houve a participação considerável de atores dos Poderes Judiciário e Legislativo, por exemplo?  

O pessoal tem chamado de um golpe parlamentar, jurídico e midiático, né. A mídia também estava no golpe de 1964, e ali tinha uma instituição envolvida, que era o Exército. Agora temos outra fortemente envolvida, que é o Judiciário, mas é diferente. Embora tenha havido, por que não dizer, uma participação expressiva popular tanto em 1964 quanto agora, porque é inegável que muita gente apoiou ou foi contra, enfim... O país se dividiu.

Você estudou o papel da imprensa na época da ditadura. É possível localizar ecos dessa participação também atualmente, no que se refere aos elementos discursivos?  

Hoje tem um aspecto novo, que são as redes sociais e a profunda crise que a imprensa tradicional tem enfrentando diante dessa propagação das redes sociais e da disseminação da informação por intermédio das mídias digitais. Acho que tem um aspecto que é o fato de a imprensa tradicional ter se sentido ameaçada pelo advento desses novos meios e ter passado a competir com eles. Isso já vem desde 2013.

Eles ficaram muito assustados quando viram que aquelas mobilizações todas aconteceram, em parte, independentemente do que era noticiado na mídia. Eles passaram a buscar uma intervenção maior, uma espécie de competição com os novos meios, interagindo com eles também. Me parece que esse é um aspecto novo, que ainda não foi suficientemente estudado, mas que vale a pena pensar.

Isso teria, então, colocado em xeque a hegemonia discursiva que era bancada pela grande imprensa?

Sim, e ela passou a disputar essa hegemonia de um lado conservador. Você vê, por exemplo, que, na época das manifestações de 2013, tinha uma capa da revista Veja que dizia assim: “Quando é que eles vão protestar agora contra a corrupção, contra o populismo do PT?”. Essas coisas que a imprensa de direita diz... Eles trataram de tentar direcionar o movimento para a ideologia deles, pros seus interesses políticos e, em grande parte, conseguiram. Aqueles movimentos começaram com uma característica mais à esquerda e acabaram ganhando uma roupagem mais à direita.

Uma das coisas que o senhor mencionou também é que não se deve atribuir a responsabilidade a todos os setores da sociedade, no que se refere aos contextos de golpe, pra não perder o caráter de classe social. Qual teria sido o papel das classes populares em 1964 e no processo recente?  

Tanto naquela época quanto agora foram processos evidentemente contra os direitos dos trabalhadores. As contrarreformas que hoje estão em curso deixam isso nítido. Agora, isso não significa que não haja tentativas, e muitas vezes bem-sucedidas, de disseminação de ideias conservadoras e até fascistas em meios populares. Nós temos visto aí, por exemplo, os tais cursinhos que o Bolsonaro tem organizado nas periferias das cidades – houve até manifestação em São Paulo no último domingo –, dando escolaridade pra uma certa população da periferia que se interessa por integrar a Polícia Militar ou as Forças Armadas nos seus processos seletivos de escolas militares da PM ou do Exército e da Marinha. 

Não podemos imaginar que a ideologia das classes dominantes fica só entre os banqueiros, os empresários. Ela é disseminada socialmente, como foi em 1964 e é hoje. Tem setores populares que aceitaram ou que disseminaram essa ideologia das contrarreformas que têm sido veiculadas aí pelo atual governo.

Considerando todos esses elementos que o senhor mencionou, é possível afirmar que o processo democrático brasileiro é inconcluso?

O processo democrático é sempre inconcluso, mesmo os melhores, porque a democracia é sempre um aperfeiçoamento. É a busca de acesso a direitos sociais pra maioria da população, acesso a liberdades democráticas, amplas e que sempre têm algum tolhimento. É preciso sempre aperfeiçoar. Eu diria que uma utopia efetiva é de uma democratização política, econômica social em que todos tenham amplos direitos e possam se realizar como pessoas, sem constrangimentos materiais e autoritários que restrinjam as liberdades civis. 

Toda democracia, nesse sentido, é uma democracia em aperfeiçoamento. Agora, muitos imaginavam – e parecia, pra gente, que, desde o governo FHC, passando por Lula e Dilma – que esse processo era sempre ascendente, sempre no sentido de ir melhorando e conquistando novas ampliações democráticas. E esse processo de impeachment – ou golpe, como se queira chamar – me parece que é uma reversão a isso. É um passo pra trás – ou muitos passos pra trás – nesse sentido de uma democracia efetivamente econômica, política e social no país.

Edição: Luiz Felipe Albuquerque