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Carolina de Jesus: escritora que traduziu em palavras uma realidade incômoda

Moradora da favela do Canindé, em SP, ela rompeu com a lógica do mercado cultural e ganhou espaço em mais de 40 países

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Escritora morreu aos 62 anos, em 1977, de insuficiência respiratória
Escritora morreu aos 62 anos, em 1977, de insuficiência respiratória - Reprodução
Moradora da favela do Canindé, em SP, ela rompeu com a lógica do mercado cultural e ganhou espaço em mais de 40 países

No mês que representa simbolicamente a luta das mulheres pelo mundo, a literatura nacional tem um grande nome para celebrar. O dia 14 de março marca os 114 anos do nascimento de Carolina Maria de Jesus, mulher, negra, moradora da periferia e escritora brasileira. Mineira, ela veio para São Paulo morar na favela do Canindé e ganhou reconhecimento com a obra Quarto do Despejo: diário de uma favelada.

Para a escritora Jarid Arraes, admiradora de Carolina, o sucesso da autora se deve à sinceridade de sua obra, por ser alguém que viveu aquilo que narrou. Também negra, a cearense é cordelista e autora de livros que retratam histórias de resistência de mulheres negras brasileiras.

"A Carolina Maria de Jesus tratou nas obras dela e nas falas dela de temas que eram e ainda são muito sensíveis para a sociedade. Então, para a época, foi muito revolucionário o que ela fez", defende Jarid ao lembrar de um dos temas centrais dos textos de Carolina: a desigualdade.

Ao chegar na capital paulista em 1937, a escritora experimenta o impacto da cidade grande. Foi empregada doméstica, catadora de papel e criou sozinha seus três filhos. Apesar da frieza de São Paulo, é no meio urbano que ela encontra espaço para ter seus escritos publicados na forma de livros.

O primeiro deles, Quarto do Despejo, chegou ao conhecimento do público em 1960. Nele, Carolina narra a própria realidade de fome, de pobreza e dos preconceitos que enfrentou por ser uma mulher negra. Os relatos, escritos originalmente em cadernos que encontrava no lixo, constroem uma crítica à desigualdade social entre o centro da cidade, que seria uma 'sala de visitas', e a favela, que seria o 'quarto de despejo', onde é jogado tudo aquilo que se quer esconder.

A obra de Carolina foi publicada em 46 países, em 16 idiomas diferentes. Com a Ditadura Militar brasileira, em 1964, e o rompimento dos direitos democráticos, a escritora, que defendeu os oprimidos, foi relacionada aos ideais socialistas, segundo conta o jornalista e crítico literário Tom Farias, que acaba de produzir uma biografia de Carolina. 

"Obviamente, as editoras, depois de 1964, recrudesceram em publicações não só de Carolina, mas de outros autores ditos socialistas", explica. "Carolina era o que podemos chamar de uma 'socialista ingênua', não militante. Ela não tinha conhecimento das ideologias pelos livros, como Karl Marx ou os outros socialistas em voga na época. Mas, ela recebeu todo esse embate e, como era a peça mais fácil do sistema por ser mulher, negra, mãe solteira de dois filhos e de origem pobre, padeceu mais com relação a isso."

Não bastasse ter que enfrentar esses preconceitos, um estigma que também recaiu sobre Carolina diz respeito à sua escrita. De família em grande parte analfabeta — uma herança da escravidão brasileira — a escritora estudou no ensino formal por apenas dois anos, mas nunca deixou de ler e escrever.

"Existe um preconceito linguístico, de achar que só há um padrão de língua comunicável no mundo. Não. E Carolina provou isso: que, mesmo ao escrever umas palavras 'mais incorretas' do idioma, supostamente, ela conseguiu se comunicar", pontua Farias.

Apesar do sucesso de Quarto do Despejo, as demais obras da mineira, como os livros Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963), ambos de 1963, não obtiveram o mesmo alcance.

A escritora Jarid Arraes atribui o esquecimento de Carolina à falta de interesse do mercado cultural em retratar as outras facetas de uma mulher, pobre e trabalhadora, que queria outras coisas além de escrever, como por exemplo o cantar e atuar.

"Penso que o sucesso da Carolina com o Quarto de Despejo se deu devido à exotificação que foi feita em torno da figura da favelada. Isso foi exotificado, tratado como se ela fosse quase um animal no zoológico", diz Arraes.

Ainda hoje, a autora é exemplo não só para a literatura, mas para muitas mulheres escritoras negras. Com sua coragem e resistência, ela mostrou que é possível desafiar a lógica de um mercado cultural que prioriza o perfil masculino e branco.

"É um trabalho de cavar e resgatar e lembrar que esse esquecimento é político, que está diretamente ligado ao racismo e ao machismo  que ela sofreu e sofre ainda hoje, porque ainda hoje há quem diga que ela não é escritora, que o que ela escreve não tem qualidade. Há muito o que se debater e se conversar honestamente a respeito disso", pontua a cordelista.

Aos que desejam conhecer mais sobre a história de vida da escritora, o livro Carolina — uma biografia, do escritor Tom Farias é uma opção. A obra Editora Malê será lançada nesta quinta-feira (15), às 18h, na Casa das Rosas, em São Paulo (SP) e já está disponível para compra online

Edição: Camila Salmazio