Mudanças

O que poderá mudar na economia cubana com a eleição de um novo presidente?

Abertura ao capital internacional, aumento do salário mínimo e moeda única são alguns dos desafios do próximo mandatário

Brasil de Fato | Enviada especial a Havana (Cuba) |
Mudanças econômicas podem impactar a vida de milhões de cubanos
Mudanças econômicas podem impactar a vida de milhões de cubanos - Mauro Parra-Miranda via Flickr/Creative Commons

Os 605 deputados e deputadas eleitos em 11 de março deste ano irão à Assembleia Nacional do Poder Popular (ANPP) em 19 de abril para decidir quem será o próximo presidente. Os deputados também serão responsáveis por escolher quem serão os 31 membros do Conselho de Estado, órgão colegiado mais importante de Cuba. É a primeira vez em 60 anos que um Castro não estará no cargo mais alto do país.

As mudanças na estrutura política não deixam de refletir a necessidade de ajustes e reestruturações em inúmeros aspectos da vida do povo cubano e na realidade econômica do país. O desafio de conseguir transformar aspectos do modo de vida de Cuba sem abrir mão das conquistas históricas está colocado para seus novos comandantes.

Para ajudar a entender o processo pelo qual passa Cuba para além dos olhares da grande mídia, o Brasil de Fato já trouxe em seu especial duas matérias que trazem outro olhar sobre a Ilha, suas transformações e permanências. Na primeira, as vozes dos velhos comandantes afirmam que Cuba não deixará de ser socialista. Na segunda, abordamos as questões sobre propriedade e comércio. Agora, separamos alguns pontos sobre como esse novo capítulo da revolução cubana irá lidar com aspectos macroeconômicos: a abertura aos capitais estrangeiros, salário mínimo, as duas moedas e o bloqueio econômico imposto pelos EUA. Confira:

Salário mínimo e as duas moedas

Um dos principais desafios a serem superados pelo atual modelo é o valor do salário mínimo, de acordo com o ex-guerrilheiro e fundador do Partido Comunista, Angel Fernandes Vila. “O nosso maior problema é a questão do bloqueio. O segundo maior é o valor do salário mínimo. As pessoas não estão vivendo do seu trabalho como deveriam viver. Isso acontece porque o que produzimos no país atualmente não é suficiente para melhorar as condições econômicas de todos os trabalhadores. O salário não é suficiente”, diz Vila, que vive com o que recebe como professor de Medicina da Universidade de Havana.

Dentro desse pacote de mudanças, o governo cubano também pretende mexer no sistema monetário do país, que tem duas moedas. “A moeda dupla é outro nó. Nós ganhamos em pesos cubanos e quase tudo que necessitamos comprar está no valor do dólar, por conta da outra moeda que é o CUC [Peso Conversível Cubano, criado em 1994 para evitar a circulação do dólar no país e usada por turistas]”, explica o médico.

Angel frisa ainda que o baixo valor do peso cubano influencia diretamente na qualidade de vida dos trabalhadores. “Um dólar custa 25 pesos cubanos. Isso quer dizer que ganhamos um peso, mas gastamos 25 para comprar o que necessitamos. Essa é uma situação que todos os trabalhadores têm que enfrentar. E resolvemos isso nos privando das coisas”, lamenta.

Em 2013, Raúl Castro chegou a anunciar a unificação das moedas. Segundo a imprensa cubana, o novo governo deve avançar na implementação de um sistema de moeda única, mas ainda não foram divulgados detalhes sobre como se dará essa mudança.

Há a expectativa que a abertura econômica poderá significar melhoras nas condições de vida da população cubana. Foto: Pedro Szekely via Flickr/Creative Commons

Capitais internacionais

Há uma aposta de que o investimento estrangeiro será a base principal da abertura econômica, segundo o Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social até 2030, elaborado pelo Partido Comunista Cubano (PCC) e que será submetido à Assembleia Nacional depois de abril.

Apesar dos Estados Unidos manterem o bloqueio econômico, alguns países têm interesse em investir em Cuba. Entre eles estão a Espanha - que já possui rede hoteleira na ilha -, e, mais recentemente, a França - que opera voos diretos entre Paris e Havana, aumentado o fluxo de turistas franceses na capital cubana.

A abertura ao capital estrangeiro é vista como uma tática para atrair a indústria, aumentar a produção agrícola, promover a produção científica, aperfeiçoar os serviços internacionais de saúde e de turismo, com o intuito de que isso seja revertido em aumento do desenvolvimento social e em melhorias nas condições da vida material dos cubanos.

“Nosso grande desafio é destravar a economia, porque todas as demais coisas vão bem. Temos muito boa educação, um sistema de saúde excelente, mas tudo isso custa dinheiro e precisamos buscar uma forma de financiamento”, acredita Vila.

Aos olhos estrangeiros, Cuba é uma espécie de porta-aviões, ancorado a 145 quilômetros dos Estados Unidos. Esse é um dos motivos apontados pelos quais os britânicos estariam de olho na ilha caribenha. O empresário, político e barão John Hutton of Furness, ex-membro do parlamento britânico, liderou uma missão de negócios, em 2015, em Cuba.

Em consequência da visita, declarou que 32 empresas do Reino Unido estão dispostas a investir cerca de 400 milhões de euros na economia cubana, sobretudo na zona franca do Porto de Mariel, construído por empresas brasileiras e também o maior investimento do Brasil na ilha.

Furness, que também foi ministro de Defesa do Reino Unido durante o governo de Gordon Brown, do Partido Trabalhista, atualmente é diretor do Royal United Services Institute, um órgão de defesa e segurança do Reino Unido - ligado à Coroa Britânica.

Além do Reino Unido, o Canadá também tem investimentos na ilha, sobretudo no setor petroleiro, assim como Rússia, China e Angola. Há a expectativa que uma ferrovia recém construída, que liga o Porto de Mariel com o aeroporto de Havana, possa incrementar o fluxo de mercadorias no próximo período.

Superar o bloqueio

O general Ciro del Rio aponta o bloqueio dos EUA como impedimento ao progresso cubano. “A maior potência do mundo mantém o bloqueio sobre nós. Muita gente não entende o que isso significa. Se uma empresa brasileira tiver alguma tipo de relação comercial com os EUA, por exemplo, não poderá fazer negócios com a Cuba. Não temos acesso ao crédito e à tecnologia de última geração que pertença à empresas dos EUA”, lamenta.

Para Ernesto Cabrera, comerciante que administra o uma armazém de comida no município de Marianao, zona periférica da grande Havana, explica que apesar das coisas terem melhorado nos últimos anos, a escassez de alimentos ainda é um problema constante na ilha. “Infelizmente, ainda sofremos com isso, são os efeitos do bloqueio econômico imposto pelos EUA”.

“No final do ano passado tivemos um grande problema: passamos por uma escassez de medicamentos graças ao bloqueio econômico”, explica o médico Fernandes Vila. “A nossa indústria farmacêutica estava quase parando porque não conseguimos comprar as matérias primas para a produção de medicamentos. Fecharam o mercado para Cuba. Faltaram remédios essenciais como os usados em tratamentos de diabéticos e até aspirina, um analgésico, uma coisa tão simples”, relata o médico com a autoridade de quem lutou a vida inteira para superar as dificuldades do bloqueio.

Para a jornalista Irma Shelton, que até recentemente era deputada da Assembleia Nacional, o desafio de Cuba está justamente nisso, “em encontrar o caminho do desenvolvimento, apesar do embargo econômico dos EUA”.

Exportar saúde

A indústria farmacêutica cubana, apesar de sofrer com o bloqueio econômico, poderá ser uma fonte de renda importante para o país. Foto: Pan American Health Organization via Flickr

Um exemplo de sucesso e de superação das travas impostas pelos norte-americanos é a exportação de serviços de saúde. Atualmente, uma maiores fontes de ingresso de recursos para Cuba são os serviços médico no exterior. Portanto, o aperfeiçoamento desse sistema de saúde de caráter internacionalista é uma prioridade para o governo. “Os especialistas cubanos estão prestando serviços médicos em mais de 70 países. Isso inclui o Brasil, Equador, Bolívia, Nicarágua, Venezuela, mas também estamos na África, nos países árabes, como o Qatar, e mais recentemente abrimos uma frente de trabalho no Vietnã”, afirma o jornalista Pedro Pablo Figueredo.

Em Havana também foi construído um hospital para atender somente os estrangeiros que vão fazer tratamento com especialistas cubanos. Além disso, a indústria farmacêutica vem ganhando notoriedade internacional, sobretudo nos estudos e descobertas relacionadas ao câncer e à diabetes.

“Estamos trabalhando em estudos de uma série de vacinas contra os diferente tipos de cânceres e medicamentos para a diabete. O laboratório que construímos tem sido exitoso nas suas pesquisas e já temos convênios com muito países”, afirma o médico e professor da Universidade de Havana, Angel Fernandes Vila.

O jornalista Pedro Pablo Figueroa corrobora com a informação de Vila: “A indústria farmacêutica tem desenvolvido uma produção importante de medicamentos. Esse setor tem muito potencial, mas tem sido limitado pelo monopólio farmacêutico internacional, que dificulta nossa entrada nesse mercado”.

Porém, esses entraves estão sendo superados aos poucos. “Com tempo fomos demonstrando as potencialidades e o poder curativo dos medicamentos cubanos. Tanto que depois dos últimos artigos científicos publicados, algumas organizações dos Estados Unidos mostraram interesse em produzir medicamentos desse tipo. Isso faz do setor farmacêutico um setor bastante promissor em nossa economia”, diz Figueroa.

Nestes tempos plenos de transformações e permanências, convém lembrar de Fidel Castro, que tentou, durante o congresso do PCC em 2001, definir o que é revolução, uma palavra tão importante para se entender Cuba e seus processos: “Revolução é o sentido do momento histórico. É mudar tudo o que deve ser mudado. É igualdade e liberdade plenas. É ser tratado e tratar aos demais como seres humanos. É nos emancipar por nós mesmos e com nosso próprio esforço. É desafiar poderosas forças dominantes dentro e fora do âmbito social e nacional”.

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Edição: Pedro Ribeiro Nogueira