Despedida

Morre a escritora Assionara Souza, expoente no cenário literário paranaense

Formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicou seu último livro, “Alquimista na Chuva", em 2017

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Assionara Souza, em uma das suas últimas participações, em 2017, durante evento em Curitiba
Assionara Souza, em uma das suas últimas participações, em 2017, durante evento em Curitiba - Maringas Maciel

Natural de Caícó, Rio Grande do Norte, e radicada desde os 11 anos de idade em Curitiba (PR), a escritora Assionara Souza faleceu, aos 48 anos, na madrugada desta segunda (21). Ela enfrentava um câncer de intestino. O velório da escritora ocorre nesta terça (22), no Cemitério Vertical de Curitiba.

Assionara era uma das escritoras que representava a jovem geração paranaense e que se destacava no cenário literário nacional. Foi autora dos volumes de contos Cecília não é um cachimbo, de 2005; Amanhãs com Sorvete!, de 2010; Os hábitos e os monges, de 2011 e  Na rua: a caminho do circo, de 2014.

Formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), publicou seu último livro, Alquimista na Chuva, em 2017. Chegou a ter seus contos publicados no México, pela Editora Calygramma. 

Idealizou e coordenou o projeto Translações: literatura em trânsito, uma antologia de autores paranaenses, em texto e áudio.  Com o objetivo de potencializar o diálogo da literatura com outros modos de ler, ouvir e fazer, os textos foram também transpostos para voz, com sonoplastias criadas em consideração às dicções de cada autor (Confira mais sobre o projeto aqui). 

Participou do Coletivo Escritoras Suicidas e estreou em 2016 na dramaturgia com a peça Das Mulheres de Antes (2016), para a Inominável Companhia de Teatro.

Uma das últimas participações de Assionara Souza em eventos de Curitiba foi no Litercultura, em agosto de 2017, onde atuou como mediadora de uma conversa sobre o escritor argentino Adolfo Bioy Casares, com o psicanalista Christian Dunker (Confira aqui).

Conheça alguns dos contos de Assionara Souza:

O contorcionista

 É mentira. O contorcionista sente dores, sim. Sempre acredita a cada apresentação que esta certamente será a última. Concentra-se atrás da coxia fazendo e refazendo séries de alongamentos até chegar a vez de entrar no palco. Nascido em uma família de contorcionistas renomados, houve assombro e bater de pratos quando os pais e em seguida os irmãos e todos os demais parentes e mesmo os amigos descobriram: O menino não leva jeito pra coisa. O menor jeito. Não. Não leva. Guardaram-no dentro de uma caixa durante oda a adolescência para ver se ele adquiria nesse mínimo espaço habilidades que não viriam naturalmente. Seus longos e finos braços abraçavam as pernas encolhidas e com a testa encostada aos joelhos ossudos chorava sem compreender. Através de pequenos furos no papelão, assistia ao mover dos corpos compactos enrolados elásticos soltos lépidos dos seus irmãos que viviam fazendo pouco de sua nula aptidão. Dois em um. O terceiro era ele. Até que fugiu de casa levando somente o sobrenome. E perguntavam onde quer que ele fosse parar se por acaso não pertencia à estirpe da famosa família formada por excelentes contorcionistas. Cansado de não saber inventar respostas, disse que sim. E desde então lá está seu sobrenome em todos os cartazes das principais atrações do circo. Todas as noites, envolto em um círculo de luz, ele desenvolve posturas que não sabe como aprendeu. E sofre. As dores são tão violentas a ponto de convencê-lo de que toda profissão, por seu martírio, vem a ser uma espécie de ritual religioso.

O mágico

O mágico sabe de sua falta de talento desde sempre. E agora está velho de si mesmo. Acha impossível começar algo novo. Sair do circo e trabalhar como autônomo. Talvez. Mas no momento em que enfia sua mão no fundo escuro da cartola, o silêncio expectante da plateia abraça sua insuspeitada figura. E então, nesse ponto do show, o segredo salta com suas orelhas brancas e peludas no mais recôndito de sua consciência: imposteur! Um sussurro como um vento frio varre toda a alma. O riso abre-se em lâmina na face bem maquiada. Os arcos das sobrancelhas realçam um ódio anônimo direcionado aos seus cúmplices. E é com especial prazer que oferece àqueles olhares sedentos o arranjamento senil de sua falsa arte. Todos o aplaudem. A sensação é mágica.

O empresário

Ao lado da placa “Quer ser um artista?” serpenteia uma fila incomum. Homens, mulheres e crianças que se sentem marcados por algum dom, alguma habilidade que os diferencie dos simples mortais, vêm se inscrever com o Empresário. Já é costume, em cada cidade por onde o circo passa, que ele receba vários desses tipos com o fim de descobrir algum em especial que possa lhe despertar o antigo instinto de gerenciar o circo.  Cada vez menos os verdadeiros artistas surgem, ele pensa. Efeitos especiais, réplicas de números exaustivamente manjados com roupagem nova e discurso surpreendente é só o que tem visto. A mágica silenciosa e autêntica está relegada a outros tempos. Mesmo assim, o Empresário não perde a esperança – no fundo, carrega o sentimento de que, antes do último e definitivo espetáculo, haverá de se revelar, como já acontecera no passado, um talento ímpar, inigualável, algo ou alguém que de uma estranha maneira se assemelhe a ele próprio.

Contos publicados originalmente no site da revista Modo de Usar & Co.

 

Edição: Laís Melo