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A flor que rompe o asfalto

Iniciativas culturais quebram estigmas e humanizam dependentes químicos em São Paulo

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Atores da Cia Mungunzá de Teatro encenam a peça "Epidemia Prata"
Atores da Cia Mungunzá de Teatro encenam a peça "Epidemia Prata" - Divulgação
Iniciativas culturais quebram estigmas e humanizam dependentes químicos em São Paulo

Se até no asfalto de grandes centros urbanos é possível ver florescer pequenas flores, se engana quem pensa que a arte não pode existir em um dos cenários mais caóticos da capital paulista, a chamada Cracolândia, local onde há uma grande concentração de pessoas usando drogas.

Quando a Cia Mungunzá de Teatro completou oito anos, em 2016, ela  decidiu criar um centro cultural no bairro da Luz, região central da cidade de São Paulo e que fica próximo à Cracolândia.

O ator Marcos Felipe explica que para construir o prédio onde funciona hoje o teatro de Contêiner, a Cia ocupou um terreno público que não estava cumprindo sua função social. Ele diz que a partir disso foi possível entender um pouco mais dos vários problemas que atingem o centro.

"A gente começou a ter ainda mais proximidade com toda a relação política e sócio afetiva que tem na região central de São Paulo, com os usuários de drogas, com os moradores de rua, com comerciantes e até com os próprios moradores", lembra.

E dessa convivência nasceu a Epidemia Prata, uma peça inspirada nos meninos de corpos prateados que fazem malabares nos faróis e nos usuários de drogas que vivem na região do teatro. Marcos explica a relação da montagem com o cotidiano do local. 

"Ele faz um paralelo com o mito da Medusa, que transforma as outras pessoas em pedra, a partir do seu olhar. Então, como que a gente enquanto sociedade, como a gente deixa invisível alguns seres humanos e pior do que isso, como a partir do nosso olhar daquela última figura, a gente transforma em pedra e esquece passado e futuro e para a gente é aquilo para sempre", diz.

A sétima arte também contribui de maneira positiva para quebrar estereótipos e estigmas dos usuários. O curta-metragem “Lança” cumpre esse papel ao trazer à tona o crescente uso de lança-perfume entre jovens da periferia. O filme também fala sobre o sarau Raiz Quadrado, que há cinco anos reúne poetas anônimos e de longa data para expressarem suas angústias, medos e experiências com a droga.

Lança, lança pro ar. Sem saber ao certo se irá voltar, latinha a chacoalhar, de outro sabor, sei lá. O importante é a brisa constar. E a vida, há, pouco importa. É ainda assim que muitos pensam, os que conheci. Infelizmente os perdi. Doeu nos parente, doeu em mim. E o foda, há, é saber que esse não será o último a falecer. Que não será a última lágrima a escorrer e a saudade sempre irá bater. Mas eu só queria de verdade dizer: o quanto eu amo você. 

(Trecho extraído do documentário "Lança")

Os artistas falam sobre o vício, a tristeza de verem amigos e entes queridos partindo e buscam na poesia encontrar o lado mais humano dessas situações. A professora e diretora do documentário, Aline de Fátima, explica que foi exatamente essa humanidade que chamou a sua atenção e fez com que ela rodasse o filme.

"Nessa praça onde acontece o sarau, ele percebeu muitas frascos usados de lança perfume, uma quantidade que chamou a atenção dele. Ai ele me contou que teve a ideia de pegar esses frascos e colocar uma poesia dentro", diz a diretora.

A professora conta que a partir disso, começou a pesquisar sobre o tema, mas encontrou dificuldades para encontrar informações sobre as vítimas da droga.

"O número de mortos pelo uso abusivo do lança perfume ele tem aumentado cada vez mais, entretanto os dados ligados  a isso, a esse tipo de morte eles são quase zero, não existe nenhum dado oficial, tanto é que os dados que eu apresento no filme eles não são oficiais porque não existem esses dados", explica.

Aline também comenta que a falta de dados oficiais dificulta um debate sério sobre a questão da droga. A presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool de São Paulo, Natália Oliveira, aponta um caminho possível para a solução do problema a um longo prazo.

"A redução de danos ela vem como uma maneira única de tentar reduzir possíveis danos que são associados ao uso de drogas, seja drogas lícitas ou ilícitas. Possíveis danos sociais, possíveis danos à saúde, individualmente. A possibilidade de transmissão de outras substâncias por conta do uso de drogas. Então a gente chama de uma ética do cuidado", comenta a especialista.

Outra iniciativa que também busca fazer da arte um ato de resistência é o Centro de Convivência É de Lei. A associação é umas das poucas no Brasil que trabalham com pessoas usuárias de drogas pela perspectiva da redução de danos. Angélica Comis coordena todas as ações do centro e fala um pouco sobre as atividades desenvolvidas com o público da casa.

"A gente tem algumas atividades que nós fazemos com os nossos conviventes. Então existem oficinas de fotografia, onde os conviventes ficaram algum tempo com uma câmera fotográfica e foram registrando o seu cotidiano. Depois foi feito uma exposição com isso, para que eles tragam o olhar deles. O nome da exposição chama "Fora da Margem". A gente tem também oficinas de corpo, onde a gente vai trabalhar as questões corporais", comenta. 

E a cultura segue resistindo, brotando no meio do asfalto, do improvável, do árido. Segue pulsando, ressignificando a vida de tanta gente negligenciada, julgada no meio do aglomerado desigual das cidades e invisibilizadas pela sociedade.

 

Edição: Guilherme Henrique