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Num dia desses qualquer

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Sem espanto, sem cólera, sem asco.
Sem espanto, sem cólera, sem asco. - Foto: Pixabay
Seremos nós ou outros; esses mesmos que estão aí vivendo estes dias quaisquer

Pode acontecer num dia qualquer.

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Num dia desses em que Aécio Neves continuar solto e deputado.

Num dia desses em que for arquivado mais um processo contra Serra, Aloysio, Ônix, Geddel e o Gato Angorá.

Num dia desses em que Temer estiver – quem sabe -- despachando no Palácio Pamphilj, em Roma, ou em outra qualquer embaixada ao redor do mundo.

Num dia desses em que a família do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), continuar buscando justiça.

Num dia desses em que a delegada Erika Marena, da PF, galgar mais um degrau na carreira, em decorrência de seu mérito, de sua empatia e de seu olhar compassivo para a humanidade.

Num dia desses em que os produtores de proteína animal, estarrecidos observarem o Brasil perder os mercados do Oriente Médio e talvez da Rússia.

Num dia desses em que Sérgio Moro estiver absorvido na caçada de pessoas físicas ou jurídicas que aborreceram seu empregador. 

Num dia desses em que a Polícia Federal inventar outro nome enigmático para a mais recente operação destinada a livrar a pátria dos malditos.

Num dia desses em que os procuradores da República encontrarem, enfim, a República tão procurada para se depararem apenas com escombros.

Num dia desses em que alguém trajando verde-oliva sussurrar algo no ouvido do presidente do Supremo que, solene, assentirá.

Num dia desses em que a Corte máxima irá se apresentar – como tem feito laboriosamente – ainda mais mínima.

Num dia desses em que um menino entrar na escola com o revólver do pai para descarregá-lo no professor de História.

Num dia desses em que um travesti – mais um – for espancado até a morte no centrão de São Paulo.

Num dia desses em que a tela de um cinema for retalhada à faca naquela cena em que dois homens se beijam.

Num dia desses em que os pastores irão bradar “Aleluia, Senhor!” como sempre tem feito.

Num dia desses em que o longo braço da lei continuar longe, demasiado longe, dos assassinos de Marielle. E de Anderson.

Num dia desses em que mais um notável homem público informar que as instituições estão funcionando e que a Nação não corre perigo.

Num dia desses em que Justiça, Democracia e Liberdade mostrarem-se, mais uma vez, aquilo que têm sido ao longo dos últimos anos: continente sem conteúdo, palavras desabitadas, assombradas pelo vácuo. 

Num dia desses em que todos os gestos serão reencenados, com o país amoldado à sua sina.

Se num dia desses em que as pessoas estiverem preocupadas com o emprego, a comida, a casa, vier a notícia: houve uma morte na cela da superintendência da Polícia Federal em Curitiba.

Se um dia desses vier, o que se fará?

Será um dia para renegar o horror e estraçalhar a farsa? Para chutar as portas dos palácios? Para transformar as ruas e avenidas em rios e mares com a força da torrente rompendo e tudo arrastando?

Ou será um dia como qualquer outro?

A depender da resposta, será um Brasil ou outro. Seremos nós mesmos, enfim, ou outros; esses mesmos que estão aí, vivendo estes dias como se fossem dias quaisquer. Sem espanto, sem cólera, sem asco.

 

* Ayrton Centeno é jornalista. Trabalhou, entre outros veículos, no Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra e autor de "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e “O Pais da Suruba” (Libretos, 2017), entre outros livros.

Edição: Cecília Figueiredo